Vozes históricas do feminismo: uma conversa com Leila Barsted e Jacqueline Pitanguy

Conheça a história da Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) que luta pelos direitos das mulheres.

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Atados Histórias
7 min readJun 15, 2018

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Foto: Acervo da ONG

Há quase três décadas, a socióloga Jacqueline Pitanguy e a advogada Leila Barsted fundaram, juntamente com uma outra amiga, a Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), uma organização não governamental sem fins lucrativos cujo objetivo era - e continua sendo durante todos esses anos - lutar pela igualdade de gênero em defesa dos direitos das mulheres. É claro que, desde 1990 até 2018, muito mudou no cenário brasileiro e o Atados teve a chance e a honra de conversar com duas figuras icônicas para que essas lutas ganhassem espaço. Jacqueline e Leila, cujos nomes já integraram a lista para o Prêmio Nobel da Paz de 2005, são vozes de uma geração que, incansavelmente, luta contra a opressão e o preconceito. No breve encontro de uma tarde, ambas falaram sobre a organização em si, sobre o trabalho que desempenham no dia a dia e sobre os rumos do setor social no Brasil hoje.

Atados: A senhora poderia falar um pouco sobre as articulações iniciais que levaram à fundação da Cepia?

Leila Barsted: Bem, nós vínhamos, desde a década de 70, em uma militância feminista. A fundação da Cepia foi um processo para dar continuidade a essa nossa militância e, ao mesmo tempo, institucionalizar uma organização. Começamos em 1990, com a proposta de trabalhar com a questão da cidadania, tendo como foco mulheres, jovens e setores marginalizados da sociedade em geral. Todo o nosso trabalho procura uma relação entre gênero, raça, etnia, classe social, tentando ver um feminismo mais plural, de modo a garantir esses direitos.

Atados: Por exemplo?

Leila Barsted: Hoje em dia estamos muito envolvidas na capacitação de juízes e operadores do Direito, para entender a Lei Maria da Penha e os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos em geral. Então, esse braço de formar e de capacitar é muito forte em todas as nossas linhas de atuação. Nesse período, também fizemos muitas campanhas, por exemplo, pelo direito ao aborto legal em casos de anencefalia - isso passou no Supremo, inclusive. Na nossa agenda, também temos incluída toda uma preocupação com a violência contra as mulheres com deficiência e contra mulheres refugiadas, situações ainda muito pouco faladas.

Atados: E como a senhora insere a história da Cepia junto com a sua própria história pessoal? Como elas se mesclam?

Leila Barsted: Ah, isso tem muito a ver com as nossas biografias, minha e da Jacqueline. Nós somos de uma geração que as pessoas dizem ter, praticamente, lançado o que dizem ser “a segunda onda do feminismo”, na década de 70. Eu nem gosto muito desse termo onda, porque dá a impressão de que houve momentos de recuo e de avanço. Eu acho que, no Brasil, as mulheres sempre lutara, não necessariamente de forma flagrada, vista, divulgada, mas, desde a escravidão, a resistência está lá. Aqui no Rio, nós já tínhamos nos organizado em grupos feministas, em articulações informais. Em 1975, ainda sem sermos uma organização, montamos um seminário sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. Todas somos de uma geração que, cada uma da sua maneira, lutou contra a ditadura, mas, mesmo assim, com o apoio da ONU e da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), conseguimos realizar esse seminário.

Leila Barsted. Foto: Acervo

A caminhada não foi fácil. E continua não sendo fácil, principalmente, para nossa geração, quando percebemos que muitas dessas vitórias estão se esfarelando.

Atados: Nesse cenário de perda de direitos que acaba de mencionar, quais as mudanças positivas?

Leila Barsted: É muito importante quando nos encontramos nas passeatas e vemos essa garotada nova, essa meninada dos coletivos feministas. E não só as moças, os rapazes também, segurando esses bastões e essas bandeiras. Uma das coisas que marcou muito o nosso feminismo foi que ele era apartidário. Nós não estávamos ali defendendo o partido A, B ou C. Queríamos eleições, claro, mas não direcionadas para um partido ou outro. Houve uma época em que fizemos uma coisa bonita, chamada o Alerta Feminista para as eleições. Chamamos todas as mulheres, de qualquer partido, desde que estivessem alinhadas com uma pauta feminista.

Atados: Existe uma clara preocupação da Cepia em formar pessoas e levar informação a elas. De 1990 para cá, quais foram os principais aspectos do trabalho que lhes chamam mais atenção? Quais são as principais dificuldades?

Leila Barsted: É um trabalho diário. Nesses 27 anos, não houve um dia sequer em que interrompemos nosso trabalho. E lutamos com dificuldade. Nós somos uma instituição que não tem recursos públicos, então são fundações nacionais e internacionais que apoiam nossos trabalhos e acreditam na seriedade do que fazemos, o que significa que sempre temos que fazer bons projetos. É uma ação política sobre o Estado, para que ele legisle melhor, implemente serviços e para que ele interprete a legislação por uma perspectiva de gênero. Não adianta ter a Lei Maria da Penha e ela cair nas mãos de um juiz machista, por exemplo. Tem que investir na formação primária, secundária, para mudar uma cultura ainda muito sexista, racista, homofóbica. Não adianta ter boas leis, se a cultura não muda.

Jacqueline Pitanguy: Eu acho que qualquer trabalho tem a ver com contexto e, em todos esses quase 30 anos, nós atravessamos contextos muito diferentes da história do Brasil. Nos anos 2000, entramos em um contexto de afirmação de direitos, mas também surgem desafios muito grandes, sendo o principal deles a radicalização da agenda política e da intolerância, quando não se consegue encontrar, no outro, nada que gere, pelo menos, empatia. Isso é muito grave e afeta diretamente o nosso trabalho, porque lidamos com os direitos humanos. Trabalhar em um campo minado pela intolerância e pela quase impossibilidade do diálogo é muito difícil. As forças conservadoras estão se reagrupando. Há uma demonização da agenda dos direitos como um todo e, claro, das mulheres em particular. Esse é o grande desafio.

Jacqueline Pitanguy. Foto: Acervo

Se as forças retrógradas também se unem, então por que as forças sociais não se juntam? As pessoas precisam reconhecer suas diferenças, mas também precisam identificar as agendas comuns e somar forças. Essa é a saída.

Atados: O conceito de lugar de fala é muito discutido hoje em diversas áreas. Como ele se coloca na perspectiva do feminismo?

Leila Barsted: Quando começamos um movimento, a questão identitária é importante. Por mais que eu, Leila, uma mulher branca, possa ter uma solidariedade enorme com as mulheres negras, eu não posso dizer que eu vivencio a mesma coisa que uma negra vivencia, mesmo que sejamos da mesma classe. Eu nunca senti o racismo, eu nunca me senti inibida de entrar em um lugar pela minha cor. A vivência do racismo, do feminino, da homossexualidade é difícil de ser sentida, por mais que eu tenha empatia. Agora, a questão principal é: esses são, sim, problemas de todos nós. Por exemplo, o racismo me agride, não pelo fato de eu ser ou não negra, mas atinge os meus valores. É uma responsabilidade nossa com o que nós entendemos que seja democracia! Essas lutas só vão avançar se conseguirmos enlaçar cada vez mais setores da sociedade. Tem que haver diálogo.

Jacqueline Pitanguy: Por um lado, existem sim, diferenças. Eu sou uma mulher de classe média. Eu tive oportunidades na minha vida que outras mulheres não tiveram. Então, a minha fala é de um lugar de elite, não há dúvida. Agora, essa fato não me impede de solidarizar e de somar forças com a fala de uma mulher de uma favela do Rio de Janeiro, por exemplo, porque há campos comuns. O fato de o seu lugar de fala ser diferente não quer dizer que você não possa estabelecer diálogos e estratégias comuns de atuação, se as propostas são as mesmas. Seria terrível se, agora, a política se transformasse apenas em políticas identitárias. Não é assim. Se as forças retrógradas também se unem, então por que as forças sociais não se juntam? As pessoas precisam reconhecer suas diferenças, mas também precisam identificar as agendas comuns e somar forças. Essa é a saída.

Atados: Como as senhoras veem essa nova geração de jovens feministas e o que falariam para elas, passando esse bastão?

Leila Barsted: Entre a minha geração e essa nova geração, teve uma outra, que está na faixa dos 40 anos, que não se politizou muito, mesmo depois da ditadura. Hoje, você tem uma geração abaixo dos 30, que já começa a se politizar. Por quê? Primeiro, porque está mais consciente dos seus direitos. Segundo, porque está percebendo que esses direitos estão sendo tirados. Acho muito bonito que essa juventude esteja aí pautando questões ligadas ao cotidiano delas. Acho que, talvez, seria importante que ela se lançasse a um questionamento político maior. Esses jovens estão percebendo que a democracia ainda não se concretizou de fato e que ainda temos muito trabalho, mas eles trazem o vigor e a irreverência da juventude, algo que é fundamental. Eles nos ensinam muito.

Jacqueline Pitanguy: Eu acho que não há passar de bastão. Acho que há um movimento que chamamos de Primavera Feminista, que é extraordinário. Está nas ruas e trazendo grande visibilidades à agenda feminista, mas precisamos definir a diferença de atores e agenda. Os atores mudam ao longo do tempo, claro. Por exemplo, tivemos as sufragistas na luta pelo voto. O problema é que a agenda, como um todo, mudou muito pouco. As agendas, como a igualdade salarial ou a violência sexual contra a mulher, seguem quase as mesmas. Não teve passagem de bastão, porque as questões estão aí e muitos obstáculos não foram sendo superados. E mais: com ameaça de retrocesso, como no caso do aborto. É um movimento contínuo, pois não está completo. Na nossa época, nós lutávamos muito para transformar as instituições, mas, hoje, há uma descrença muito grande nas instituições em geral e isso impede um diálogo. No entanto, mesmo que você não goste de um partido político X ou Y, a alternativa é a ditadura; é fechar o congresso e governar por decreto. Por isso, é muito importante que essa juventude saiba estabelecer uma agenda de negociação e de estratégia e é nisso que o diálogo entre as gerações é fundamental: nós aprendemos e elas também.

Texto por: Marcos Machado

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