Autonomia Trans: Uma formação voltada à viabilidade econômica de projetos sociais

Utilizando conceitos do design thinking e tecnologias sociais diminuimos barreiras e otimizamos oportunidades de negócios de pessoas trans nas áreas de moda, cultura e arte.

Antonia Moreira
Ateliê TRANSmoras
7 min readSep 21, 2020

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Durante julho e agosto o Ateliê TRANSmoras, em Campinas-SP, provocou 18 pessoas a pensarem em estratégias de criatividade e monetização para enfrentar seus desafios e otimizar oportunidades de trabalho, ainda maiores no contexto de pandemia.

Todas as participantes eram pessoas trans, de 19 a 36 anos, de 6 estados brasileiros, a maioria no sudeste e nordeste e com algo em comum: possuem fazeres artísticos ou negócios e buscam aprimorar a experiência de monetização de seus trabalhos.

A grande maioria atua nas artes integradas, incluindo performance, música e teatro (35%), seguida de costureiras e estilistas (18%), produtoras de belezas, como maquiadoras e cabeleireiras e cineastas (12%, cada).

Para profundar nossos conhecimentos em tecnologias sociais organizamos grupos focais com membras da Rede TRANSmoras, pessoas que já participaram de eventos nossos, como oficinas, desfiles e cursos.

Nessas conversas entendemos seu contexto atual, principalmente em relação ao trabalho desenvolvido na área criativa. Antes dessa troca já havíamos pré-selecionado quem atua ou têm interesse nos ramos de produção criativa/cultural.

Em um segundo momento utilizamos o conceito de Jornada do Cliente para conhecer barreiras e oportunidades das membras na oferta de seus trabalhos.

Muitos pontos eram comuns, como questões sobre precificação — custo real x valorização pelos detentores do capital; estratégias de comunicação digital e planejamento e execução de projetos.

A formação foi estruturada a partir das barreiras e oportunidades em comum mapeadas nesses primeiros encontros, com o objetivo de desenvolver o potencial de pessoas transvestigêneres [1] para atividades produtivas e compartilhar alternativas sustentáveis no campo da economia criativa [2].

O que foi o Mês da Ressignificação?

O Mês da Ressignificação: Autonomia TRANS foi uma formação com 3 módulos e 12 horas de conteúdo, com oficinas ao vivo e gravadas.

Enquanto coletividade já produzimos diversos cursos voltados à moda, principalmente de corte e costura upcycle — transmutação de materiais têxteis antes vistos sem valor pelo capital [3].

Além disso, a partir da experiência de desfiles com Vicenta Perrotta e eventos de produção do TRANSmoras, houve o fortalecimento de uma rede de profissionais capazes de atuar em diversos áreas do ramo criativo.

Com esses dois pontos em mente, a formação chega como uma estratégia de aperfeiçoamento de artistas e empreendedoras em rede, com alto potencial e barreiras de atuação em comum, superáveis com as estratégias certas.

Partimos da noção de Joice Berth de que o empoderamento individual e coletivo são duas faces da mesma moeda e, portanto, uma comunidade dita empoderada é composta por indivíduos empoderados atuantes conscientemente no processo coletivo.

Dessa forma, não utilizamos na formação esse conceito como um caminho individual, tampouco “empreender” como a via de sustentabilidade perfeita para nossos corpos. Tencionamos esses conceitos por seu esvaziamento teórico, buscando novos e próprios referenciais.

Utilizamos os conhecimentos acumulados em acolhimentos, afetos, trocas orais, desconstruções de binariedades e demais processos que o território travesti possibilitou às envolvidas, nos anos de atividade do TRANSmoras, para nos colocarmos enquanto tecnologia social aplicada à viabilidade econômica de nossos trabalhos.

Estratégias adotadas

Por ter acontecido durante a quarentena, tivemos nossa primeira experiência produzindo um curso online, mediado pela plataforma Google Sala de Aula. Os temas foram validados previamente em Workshops e pesquisas, sendo convidadas em sua maioria pessoas trans e negras para facilitação das oficinas.

Entre os conteúdos abordados estiveram:

  • Negócios sociais e trans empreendedorismo
  • Pesquisa e definição de público
  • Estratégias de precificação de trabalhos
  • Comunicação em redes sociais
  • Pós-venda
  • Fotografia com o celular, entre outras.

Os encontros foram um espetáculo à parte, momentos íntimos de trocas entre novas e velhas conhecidas. Mesmo distantes, conseguimos nos conectar emocionalmente com muitas das nossas, num processo de videochamadas longe da zoom fatigue habitual dos atuais processos cisgêneros online.

Quante gente lindeeeee

Foi um grande desafio à gestão do projeto alguns segmentos de atuação das participantes, como a música e a performance, campos em que buscamos uma compreensão mais profunda de quais “jornadas do cliente” são possíveis nas dinâmicas do consumo de arte e cultura no Brasil.

De todo modo, os conceitos de “observar”, “gerar empatia”, “idear”, “prototipar” e “avaliar” foram bem empregados por todas que engajaram nas provocações do Ateliê. Para combater nossos limites enquanto consultoras convidamos pessoas de notório saber em negócios e artes para complementar a formação por meio de mentorias individuais com as alunas.

A mentoria estruturada é um processo comum da cisgeneridade para se apoiar, visto em diversos programas de aceleração de negócios. Nossa comunidade já é embasada no apoio mútuo, mas buscamos com o programa de mentoria incutir uma cultura de acesso umas às outras num nível de negócios, networking e construção conjunta de saberes.

Ainda sobre os conjuntos de técnicas de design thinking, entendemos como desafiador utilizar certos nomes, como “prototipação”, ficando mais entendível pela adaptação da linguagem para termos como “teste e aprendizagem” ou “pequeno teste” para fins de “aprendizado, portfólio e/ou experiência”.

Resultados de primeira hora

Todas as pessoas membras da formação foram provocadas a pensar num protótipo, ou teste de algo novo, no pós curso, com acompanhamento mensal das consultoras do Ateliê. A ideia aqui é que possam investigar novas formas de monetizar seu trabalho, sobretudo em ambiente digital.

Para isso, teremos protótipos como:

  • Oficinas e apresentações online;
  • Publicação de conteúdo digital;
  • Escrita de projeto;
  • Design de vestuário para pessoas trans;
  • Consultoria em diversidade para pequenas empresas e grupos, etc.

Na avaliação da formação, feita de forma qualitativa por meio de grupo focal e quantitativa com formulário, notamos uma avaliação positiva, sobretudo em relação ao estímulo a pensar como a cabeça do cliente e conseguir diminuir atritos de compra.

Seja facilitando um perfil comercial, disponibilizando novos canais de contato, saindo à frente na transmutação de performances no online — tendo em vista que as artes presenciais irão demorar a voltar e os espaços culturais estão mais preparados agora para atuar no digital do que no início da pandemia.

Alguns pontos levantados que serão melhor estruturados numa versão 2.0 da formação são maior integração entre as participantes e mais momentos dinâmicos.

O acompanhamento emocional também apareceu como uma necessidade, de forma direta na avaliação e de forma indireta, por desafios relacionadas à transfobia estrutural que algumas participantes passaram em suas vidas e que refletiram em sua participação durante o processo.

É inerente a nossos corpos problemas não próprios, mas impostos, e isso precisa estar previsto em qualquer formação voltada a nós.

Agora os 10 projetos que se apresentaram na finalização da formação se preparam para execução, validar suas ideias e se ajustar às demandas da sociedade.

Sobre isso, Bioncinha de Oliveira comenta “Foi sobre entender o que a gente pode transformar em produto agora, ajudou nesse âmbito da urgência, quais são nossas maiores urgências para desenvolver uma moeda de troca nessa grande complexidade que é o espaço de troca financeira entre corpas trans e a cisgeneridade”.

Complementada por Águi Berenice “Nós somos corpos urgentes, temos urgências históricas, e eu acho que o principal ponto positivo da formação foi conseguir entender essas necessidades subjetivas, que em outros espaços, até voltados para pessoas trans, não tinha esse acolhimento, essa coisa mais efetiva e mais próxima. Fiz perguntas e tive respostas.”

Concluímos que a formação Autonomia TRANS foi bem sucedida em propor às participantes pensar em seus próprios negócios. Estamos mais preparadas enquanto rede para apoiar umas às outras e testar estruturas de monetização e sustentabilidade de empreendimentos.

É um resultado muito valioso à comunidade, mas também a toda a sociedade e mercado, que podem se beneficiar de novas tecnologias sociais que garantem dignidade. Entendemos que as tecnologias convencionais hoje são usadas para maximizar a produtividade e o lucro, o que limita sua eficácia em resolver problemas sociais.

Com essa formação conseguimos articular, organizar e fomentar inovação social realizada por travestis e pessoas trans, de modo a criar um espaço seguro de aperfeiçoamento e descoberta das potencialidades do trabalho de cada pessoa artista e empreendedora.

A formação Autonomia TRANS contribui para desenvolver tecnologia travesti de ponta que beneficia uma cadeia inteira e abre novos caminhos e possibilidades de produção e consumo, benéficos a um amplo espectro de pessoas, incluindo aí todas as comprometidas com um mundo mais justo, sustentável e igualitário.

Notas e referências

[1] O termo transvestigênere foi cunhado por Indianare Siqueira e adotado por diversas ativistas, como Érika Hilton, para se referenciar a corpos dissidentes, incluindo travestis, transexuais, pessoas não binárias e todo o guarda-chuva transgressor de gênero. Ver “Vereadora suplente sobre trans e travestis: transvestigeneres”, Catraca Livre, 2016.

[2] Viviane Junqueira dos Santos em Projeto Político Pedagógico do ciclo de formação “Residência em Moda e Negócios Trans” [2020].

[3] Bioncinha de Oliveira (2020) cunhou o termo em seu manifesto “Transmutação têxtil: tecnologia travesti”, utilizado por Vicenta Perrotta pela primeira vez no Projeto Semente como contraposição ao anglicismo “upcycle”, que também diz respeito à reutilização de materiais têxteis antes descartados pelo processo de consumo. É um debate vivo ainda ocorrendo, com contribuições de Xãtana Xantara e outras [ver Fort Magazine, 2020].

Tecnologia social: retomando um debate. Renato Dagnino [2006]. Disponível em: <http://www.revistaespacios.com/a06v27n02/06270231.html#inicio>

Teoria do Empoderamento. Joice Berth (2019).

Agradecimentos a TODXS pela parceria, assim como @FundoElas e @LaudesFoundation pelo apoio financeiro.

Antonia Moreira foi gestora do projeto Autonomia TRANS ao lado de Rafa Kennedy e Vicenta Perrotta.

Xãntana Xantara assina a identidade visual.

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Antonia Moreira
Ateliê TRANSmoras

Bixa travesty em demolição. Redatora e produtora cultural.