Campinas, na “Volta pra casa” - mais qualidade de vida?

Campinas: não existe qualidade de vida sem mobilidade

Viver em Campinas (SP) nos últimos 8 anos me ensinou que a qualidade de vida do trânsito caótico e do ar poluído de Sampa até que valem a pena quando confrontadas com uma cidade em que é impossível (e muito necessário) se mover

Marília Moschkovich
Brasil: de 2013 ao futuro
8 min readJun 28, 2013

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Me mudei para a cidade de Campinas, no interior paulista, em Março de 2005, quando passei no vestibular para Ciências Sociais na Unicamp. Paulistana, decidi morar no centro da cidade após constatar que Barão Geraldo (distrito onde se localiza a conhecida universidade) não parecia lá muito “agitado”. Eu estudava à noite, trabalhava de dia, e quanto mais serviços, transporte, etc. disponíveis, melhor.

Após um ano morando no centro percebi que estava redondamente enganada e compreendi por que, afinal de contas, a grande maioria dos estudantes da Unicamp optava por morar em Barão Geraldo. A mobilidade na cidade é ainda pior do que o que eu experienciei nos anos anteriores morando em São Paulo. A cidade é inacessível e representa uma realidade que muitas pessoas vivem no interior paulista, não apenas em Campinas.

Vamos fazer umas contas?

Observem o mapa: eu terminava de trabalhar às 15h no local (A), pegava um ônibus e chegava em casa (B) quase às 16h, tomava banho, comia qualquer coisa e às 18h saía para pegar um ônibus que chegava à universidade (C) quase às 19h. A distância A-B é de cerca de 5km. A distância B-C é de cerca de 10km.

Mapa de Campinas (SP)

Segundo meus cálculos no Google Maps, sem contar a ida ao trabalho e a volta à noite, depois da aula (merecem ser contados à parte, logo vocês verão o por quê), eu demorava 2 horas para percorrer mais ou menos 15km. O cálculo automático do GM me diz que, de carro, o tempo estimado é menor que 30 minutos.

Na ida ao trabalho, de manhã, era pior. Às vezes eu demorava mais de uma hora e meia apenas entre chegar no ponto de ônibus, conseguir pegar um ônibus e chegar ao trabalho. Isso acontece porque, em Campinas, a grande maioria dos locais é servido apenas de uma linha. Não há linhas alternativas, secundárias. Também por isso, as linhas fazem caminhos gigantescos e “coletam” muita gente no caminho. Some isso ao baixíssimo numero de carros em cada linha e o desastre está feito. Os ônibus passavam lotadíssimos, sequer paravam no ponto, e não havia nada que eu pudesse fazer.

Na volta da Unicamp, à noite, era ainda mais complicado. A partir das 20h, muitas linhas de ônibus simplesmente deixam de passar, e as que sobram têm o número de carros reduzidíssimo (um ônibus a cada 40 ou 50 minutos, por exemplo). É comum, no distrito de Barão Geraldo, ver muitos ônibus estacionados fora do terminal enquanto centenas de passageiros esperam para embarcar num terminal vazio. Isso acontece porque não há motoristas e cobradores o suficiente para o número de carros (que já é baixo). Outras situações bizarras e infelizmente comuns são motoristas bêbados (eu vi, com esses olhinhos que a terra há de comer), e alteração de trajeto arbitrária de motoristas para cumprir com um horário impossível na planilha dos fiscais.

As aulas noturnas da Unicamp terminam às 23h, mas o último ônibus para o centro passava às 22h30. Eu e a “turma do centro” saíamos correndo da aula às 22h25 a tempo de pegar o último ônibus. Nas tantas vezes em que o perdi, precisei chamar táxi quando não havia carona.

Os táxis em Campinas são caríssimos e não circulam pelas ruas. Ficam em pontos de táxi para os quais você precisa ligar (exigindo saber o número e ter um telefone com créditos, coisa que nem todo mundo tem, nem tinha em 2005) e chamar. Quando há táxis disponíveis (à noite isso não acontece sempre), eles custam muito, mas muito caro.

Em São Paulo, o preço da bandeirada comum é R$4,10 e o quilômetro rodado à noite (bandeira 2) é R$3,25. O tempo parado custa R$33 por hora. Em Campinas, a bandeirada é R$4,40 (!) e o quilômetro rodado em bandeira 2 custa R$3,45. O tempo parado custa assustadores R$44 por hora. Campinas tem cerca de 1 milhão de habitantes e menos de mil táxis registrados. Antes de uma licitação pequena (178 vagas) feita em 2011 pela prefeitura, a última havia sido realizada nos anos 1970. Em São Paulo (município), são 33mil taxis rodando para 11 milhões de habitantes. Imaginem que São Paulo tivesse 22mil táxis a menos: essa é a situação em Campinas.

“Qualidade” de vida?

Estou me mudando de volta para São Paulo e lido com muita gente que está convencida de que a “qualidade de vida” em Campinas é supostamente “melhor”. O conceito de qualidade de vida é relativo, é claro, mas nem de longe me parece que a qualidade de vida em Campinas é melhor, depois desses últimos 8 anos que passei aqui.

Vocês devem estar se perguntando: mas o trânsito em São Paulo também não impede a mobilidade?

Pois é. Dificulta muito. O transporte em São Paulo é horrível e cheio de problemas. Uma das diferenças, penso, é o tanto que é necessário se deslocar ou não. Grande parte dos bairros paulistanos, mesmo residenciais, tem uma gama razoável de acesso a serviços (supermercados, pequenos restaurantes, opções de lazer, etc) e, quando não têm, em geral em algum bairro próximo é possível encontrá-los. Em Campinas os bairros são extremamente distantes uns dos outros, e muitas vezes ligados exclusivamente por rodovias e viadutos (quase todos privatizados, importante dizer) que dificultam, por exemplo, a opção de usar bicicleta ou de caminhar trechos mais longos. Muitos serviços ficam ainda mais inacessíveis.

A pouca oferta de atividades culturais que a cidade oferece (vale um texto à parte), os poucos parques públicos e museus, também se tornam inacessíveis com um sistema de transporte extremamente ineficaz. Certa vez calculei que, aos sábados ou domingos (quando a quantidade de ônibus circulando é ainda menor) eu demoraria cerca de três horas para ir e voltar de uma exposição usando transporte público.

Então entendi por que os estudantes da Unicamp preferem morar em Barão Geraldo (e depender da universidade em dias de semana e de meia dúzia de serviços e opções de lazer nos outros dias) e entendi porque a cidade ganha 131 novos veículos por dia. Com 1 milhão de habitantes, Campinas tem mais de 700mil veículos. Isso é mais do que o total em Porto Alegre, RS (1,5 milhão de habitantes), Recife, PE (mais de 3 milhões) e Manaus, AM (quase 2 milhões). Campinas é a 3ª cidade com maior número de carros por 100 habitantes, superada apenas por São Caetano do Sul (SP) e Curitiba (PR). São Paulo é a a 9º.

Campinas tem hoje 215 linhas de ônibus, operadas por empresas privadas. A área do município é de 794,433km². São mais ou menos 3,5 linhas por km². Com o dobro da área do município, São Paulo tem seis vezes mais linhas de ônibus, mais ou menos uma linha de ônibus para cada km². Se calcularmos a frota por linha, outra diferença brutal. São Paulo tem um pouco mais de 11 carros circulando em cada linha de ônibus. Campinas tem apenas 4.

A máfia dos transportes e a ira da população campineira

Em 2001, Marta Suplicy era prefeita de São Paulo e Antônio da Costa Santos, o “Toninho”, era prefeito de Campinas, ambos pelo Partido dos Trabalhadora (PT). A questão do transporte público era semelhante nas duas cidades, no início das gestões. Tendo tomado a prefeitura de gestões anteriores que colaboraram no sucateamento do sistema, ambos tinham grandes desafios pela frente.

As campanhas que os elegeram traziam propostas concretas de reformulação dos sistemas, recadastramento das concessões e novas licitações mais exigentes. Isso incluiria mais carros em cada linha, reformulação das linhas, menos passageiros em cada ônibus (lotar ônibus é uma forma de aumentar o lucro das empresas), entre outras coisas. Logo no início de seus mandatos, Marta e Toninho mexeram nesse vespeiro.

Marta foi ameaçada de morte.
Toninho foi assassinado.

A existência de uma máfia dos transportes, e a tal “caixa preta” de que se fala tem ainda consequências graves em ambas as cidades e por isso tantas pessoas foram às ruas (e continuam nas ruas) exigindo melhoras no sistema e na mobilidade. Se em São Paulo as manifestações chamam a atenção, em Campinas elas têm sido quase completamente ignoradas pela mídia de massas. Com a presença forte de movimentos sociais de periferia, em especial do movimento hip hop (que é extremamente forte na cidade), as manifestações em Campinas são um retrato da divisão social existente na cidade.

Os grupos ligados a partidos e universidades cumprem sua própria agenda e, depois de um tempo, têm sobrado nas manifestações apenas os grupos ligados a movimentos da periferia. Esses grupos representam a população campineira em sua maioria, que é massivamente excluída do direito à própria cidade. Não se pode circular, não se pode frequentar as próprias universidades, os poucos parques e opções de lazer e cultura que existem se concentram em espaços que os excluem (como teatros privados e caros dentro de grandes shoppings ou exposições em espaços culturais inalcançáveis de ônibus).

O Estado é, para os excluídos, o símbolo de uma violência sofrida cotidianamente há gerações.

Grupos enfrentam a polícia militar em frente à prefeitura de Campinas em 24/06/2013.

Dessa exclusão vem a ira, a raiva, a fúria. Com um pouco de encorajamento (sobretudo por parte de policiais infiltrados), não tarda a estourar um motim. Hoje, por exemplo, duas cabines de pedágio foram queimadas. O que parece um “ato de vandalismo” num primeiro momento pode fazer todo o sentido do mundo quando juntamos duas peças importantes sobre o modelo de urbanização adotado no interior paulista.

A primeira peça é que pedaços e bairros de uma mesma cidade (ou da mesma região metropolitana) são conectados por rodovias. Quer dizer que as pessoas dependem das rodovias para ir e voltar do trabalho, por exemplo, ou para ter acesso a serviços, lazer e afins. A segunda peça é que essas rodovias foram privatizadas pelo Governo do Estado, que ao mesmo tempo não regula de maneira justa o preço dos pedágios, o que acaba aumentando muito o custo de locomoção para a maioria das pessoas que vivem na periferia campineira e seus arredores. O preço do pedágio dá lucro à empresa concessionária, e impede a população pobre de circular pela cidade livremente, assim como os preços astronômicos e a situação atual do sistema de ônibus.

Impedir ou dificultar a mobilidade urbana faz parte de um projeto de cidade que exclui e segrega. É por não acreditar nesse projeto que lutamos pelo passe livre em São Paulo e em Campinas. É por sofrerem todos os dias com esse projeto que as periferias se organizam pelo direito à cidade que carregam em suas costas.

A diferença gritante nas reações aos protestos de Fernando Haddad e Jonas Donizete, atuais prefeitos da capital e da maior cidade do interior, me dá ainda mais convicção de que São Paulo oferece hoje mais qualidade de vida. Só é possível afirmar o contrário caso você defenda que “qualidade de vida” é dirigir por rodovias privadas, pagando pedágio, com a certeza de que não circulam pessoas pobres em seu bairro. Há quem acredite nisso.

Eu me recuso.

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Marília Moschkovich
Brasil: de 2013 ao futuro

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres