Por que Deus não pode ir sozinho?

Sobre a pressão de um “Vai com Deus!”

Lucas Magalhães
6 min readJun 3, 2014

Cresci em família evangélica, não muito radical. Lembro-me de minha mãe me acordando cedo aos domingos, obrigando-me a ir para a escola dominical. Não adiantava chorar, espernear ou fingir que estava doente, eu sempre terminava tendo que pôr minhas melhores roupas casuais para mostrar meu melhor aos fiéis. Nos carnavais, íamos a retiros. Nos meses de janeiro e julho, eu era inscrito na escola bíblica de férias, e uma vez por ano, era levado a trabalhar no Encontro de Crianças com Cristo.

Antes da puberdade, minhas cordas vocais emitiam um som agudo e angelical. Soprano, como os jovens castrados da Grécia antiga. Sonhava em ser cantor e ator na Rede Globo. Logo, participava do coral infantil e do grupo de teatro de minha congregação. Cheguei a fazer um solo no dia das mães e representar um dos três pastores no auto de Natal. Lembro-me, como se fosse hoje, do meu esforço para decorar minha célebre fala: “Olhem! Aquele ali não é um anjo?”

Eventualmente, ganhei um pouco de liberdade para não ir aos cultos, não lembro quando e nem como aconteceu. Era consideravelmente mais magro que hoje em dia e com um desenvolvimento pouco inferior aos outros meninos que estavam entrando no ensino médio. Havia beijado um par de garotas, e nunca tocado em nada que ficasse abaixo de seus cabelos.

A sala de aula era estreita e longa, dividida geograficamente em duas partes. A da frente era melhor iluminada, alojava um par de estudiosos e dezenas de pessoas sem brilho e mente limitada buscando um futuro dentro dos estudos conservadores, castradores e infrutíferos da escola tradicional. A parte de trás era consideravelmente mais fria e tinha duas luzes fluorescentes que eram acesas uma ou duas vezes por mês, o que me permitia usar um moletom duas vezes maior que meu corpo e esconder o fardamento verde e branco que não favorecia de forma alguma meu corpo infantil e pouco acima do peso. Marquei território na última cadeira do lado esquerdo da sala, o ponto mais escuro e menos congelante, e chegava cedo para garantir meu espaço de segunda a quinta. Nas sextas, as aulas de química e uma paixão secreta por meu professor levavam-me a sentar na primeira fileira.

O tempo me levou a conhecer uma nova amiga. Cabelos castanhos de fibra fina, lisos e longos. Lentes de contato da cor de seus cabelos, nariz perfeitamente arrebitado e sorriso encantador. Fervorosamente religiosa, de vertente neopentecostal. Logo fui levado à sua igreja, e por lá me mantive pelos próximos dois anos. Afastei-me de amigos de infância, afinal, eu era um fruto separado pelo Espírito Santo, e qualquer contato com eles poderia manchar minha casca. Falava com eles apenas para evangelizar, pois me era ensinado que eu deveria sempre falar das boas novas de minha conversão.

Fiz um voto de castidade, faltei aniversários de melhores amigos e ganhei fama de rebelde dentro da igreja por questionar alguns valores. Aos olhos dos alvos e intocáveis fieis, eu e meus amigos éramos o fruto podre dentro do templo, falsos profetas que roubariam suas mentes e os ensinaria a não engolir tudo o que lhes era dito. No colégio, eu era o viadinho que não se assumia, fazia pose de santo e não sabia como se desenvolvia a vida de um adolescente normal. Como os próprios pastores diziam: “Crente não bebe, mas come pra caramba.”

Com dez, vinte quilos a mais. A igreja fez com que eu não pertencesse a lugar nenhum.

Consigo lembrar-me, com clareza, de um dia, após um ano e pouco de santidade absoluta, culpando-me, vomitando e penitenciando-me a cada vez que me masturbava e notava que meninos me atraiam, em que a pastora da sede chamou-me para conversar. Havia ouvido falar que eu tinha o hábito da leitura, e perguntou-me sobre meus livros preferidos. Citei Harry Potter, mais um par de séries infantojuvenis e alguns romances trágicos. Fui repreendido imediatamente, ela me disse que estes livros eram uma ferramenta que os seres malignos utilizavam para penetrar em minha mente cristã, e indicou-me autores como Max Lucado, Benny Hinn, Augusto Cury e Robson Rodovalho. Nunca consegui terminar nenhum de seus livros, e o gosto pela literatura tornou-se mais um elemento pelo qual me culpar.

Com quase dois anos de sábados e domingos dedicados a louvores, aulas e orações, minha visão sobre a vida começou a mudar. Um novo amigo do colégio, assumidamente homossexual, fez-me ver que nem tudo aquilo que os bispos, pastores e líderes diziam ser demoníaco era de fato. Uma professora candomblecista mostrou-me que suas adorações à natureza e suas entidades eram mais sinceras que as minhas. Tudo o que eu acreditava começou a desabar diante de meus olhos. Eu era um menino de 16 anos que não sabia absolutamente nada sobre a vida real e havia desaprendido a viver em sociedade. Puro demais para o mundo, visto por meus pais com receio (afinal, eles viam que sua cria era um monstro) e ímpio demais para a igreja.

Era uma quarta-feira de sol de meu último ano de ensino médio e eu chorava escondido no fundo de minha sala. Usava o mesmo moletom que usava quando calouro, agora justo em minha cintura. Eu não sabia que caminho seguir quando o ano acabasse. Fingi estar com dor de cabeça, saí mais cedo do colégio, passei numa loja de conveniências e comprei uma carteira de Lucky Strikes mentolados. Tremi ao tocar naquilo, e surpreendi-me ao ver um cigarro de perto, era cheiroso e macio. Tomei um ônibus até minha casa, tirei todas as minhas roupas e dirigi-me até o quintal. Acendi meu primeiro cigarro e me engasguei. Eu não sabia o que fazer, então apaguei meu demônio e procurei vídeos que me ensinassem a tragar.

“Puxe a fumaça, e finja que levou um susto.”

Fumei mais dois cigarros, e passei a tarde chorando, vomitando, e com dor de cabeça. Lavei a boca sete vezes e tomei três banhos. Naquela mesma noite, joguei as piolas e o resto da carteira envoltos em três sacolas plásticas numa lixeira pública. Naquele momento, minha família não sabia quem eu era, meus colegas de classe tinham medo de mim, a igreja me repugnava e Deus me odiava. Eu me odiava.

Parei de ir ao culto, e após um mês, desvinculei-me de vez da congregação. Não longe dali, tomei meu primeiro porre na casa de um desconhecido. Saí de lá carregado pelo namorado de uma amiga e vomitei pelos próximos dois dias. Meus pais achavam que eu havia comido camarão estragado. Esses crustáceos podem ser destruidores, afinal.

Mudei de amigos, passei a beber todos os dias e não comer nada. Perdi cerca de quinze quilos para a cachaça, desmaiei no meio da rua, viciei-me em nicotina, coloquei piercings , beijei meu primeiro garoto e planejei meu suicídio. Meu organismo quase não funcionava devido ao uso constante de medicações leves. Sabia que paracetamol somado ao álcool me daria problemas de fígado, que Dramin me faria dormir, e que se eu fumasse o máximo que podia, teria câncer. Sabia também que se sangrasse um pouco, a dor diminuiria. Morrer aos poucos era meu novo conforto.

Entrei na universidade, desde então passei por dois outros cursos antes de encontrar-me nas Letras condenadas pela pastora. A poesia foi um porto seguro em todas as épocas de minha vida. Contei aos meus pais sobre minha sexualidade e fui bem recebido apesar dos pesares iniciais. Apaixonei-me e tive relacionamentos disfuncionais meia dúzia de vezes. Comecei a frequentar um psicólogo, que me deu alguns pares de termos antes de me diagnosticar, entre eles, ansiedade aguda e depressão crônica. Passei mais um ano engolindo reguladores de humor, antidepressivos, ansiolíticos e sem controle algum de meu próprio corpo. E tudo se foi.

Hoje, após aprender da pior forma possível que não há nada de errado em ser quem eu sou, após decidir que não preciso nomear minhas crenças, que meninos e meninas beijam de forma diferente e que meu anel de castidade está em algum lugar da rede de esgotos de minha cidade, consigo levar minha vida. Apaixonei-me pelo meu curso, consegui um estágio e aprendi a visualizar meu futuro. Bebo com menos frequência, fumo diariamente e não me importo com isso. Saio nos fins de semana, e antes de sair, de um lado ou de outro, sempre ouço um sonoro “Vai com Deus!”

Quando ouço algo do tipo, olho para minhas cicatrizes e peço aos céus que Deus não me acompanhe. Eu não preciso de mais um par de olhos me julgando. Não mais.

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