Vago (foto: Otávio Castedo)

Em busca da paisagem perdida

Um ensaio confundindo origens e finalidades

Marcelo Armesto Dos Santos
atrito
Published in
8 min readApr 15, 2018

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Algumas perguntas antecedem esse texto. Como começar a falar sobre o próprio trabalho? Ao desenvolver uma pesquisa que fala sobre minha própria produção, como ser um historiador de mim mesmo? Até onde ir na coleção dos trapos e farrapos da própria história? Os restos, os farelos de borracha no chão, podem falar tanto sobre o pensamento quanto os riscos sobre o papel? A partir de que momento se é anacrônico em relação ao próprio fazer? É possível para o artista analisar os próprios sintomas?

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites miluma-páginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas. (Haroldo de Campos, Galáxias, 2004)

Comecemos, pois. Dentre os trabalhos que venho desenvolvendo tendo o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino como centro, um deles chama-se Vago. Depois de alguns anos produzindo trabalhos predominantemente em preto e branco — como na série Reminiscências Futuras, passei a sentir falta de trabalhar com cor. Escolhi a aquarela, já que é mais próxima do desenho do que outros métodos de pintura. A primeira série de trabalhos originada dessa vontade foi Desenho como remédio. Tive, à época, uma dor de garganta besta e, mesmo assim, fui parar na emergência do Cruz Azul. Lá me receitaram uma quantidade absurda de medicamentos. Incomodado com a situação, preso em casa sem possibilidade de manter muitas atividades, resolvi desenhar as embalagens daqueles remédios. Então, criei um enunciado: desenhar todos os medicamentos que tomar daqui em diante, em uma espécie de autorretrato de minha saúde.

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Vou chamar aqui de anacronismo a marca da ficção na história. E partir do princípio de que só existe história anacrônica: ao aspecto cronológico do objeto histórico, sempre é oposto um contrarritmo anacrônico, em uma pororoca de sentido. E considero aqui que só há história dos sintomas. Como sintoma — e especialmente como imagem-sintoma — penso em algo que surge, que emerge e interrompe o fluxo da representação, em que a imagem é o próprio inconsciente dessa representação, surgido sempre do contratempo e vindo importunar o presente. Penso em sintoma como algo que não é a coisa em si (a doença, caso estivéssemos falando de medicina), mas é a expressão sensível desse algo que está por debaixo.

Entendo que só resta ao artista, enquanto historiador de si mesmo, a convocação e a interrogação da memória e, com ela, uma interrogação psíquica e uma remontagem anacrônica de seus vestígios. Assim, olhar para minha produção e para meus trabalhos como sintomas — como o encontro de durações completamente heterogêneas — de uma situação irrecuperável. Tento aqui olhar para Vago justamente como esse encontro de durações e resgatar as origens-turbilhão desse trabalho em um exercício de resgate de memória e de imaginação.

O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências que só se referem a si mesmas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa.

Revendo o primeiro caderno de Vago, chego à sequência dos quatro trabalhos que fiz durante uma viagem de barco de sete dias. Todas aquarelas são de vistas do mar. Consigo relembrar como cada ponto em que escolhi desenhar tinha cor de oceano diferente das outras. A pintura imediatamente anterior a essa sequência e a imediatamente posterior foram vistas da janela de minha casa, o que me fez repensar coisas sobre o trabalho. Comecei Vago com uma ideia do vagar, com a ideia de que fosse um tipo de diário de viagem. Porém, talvez fale muito mais sobre o voltar do que sobre o ir. Fale mais sobre minha casa do que sobre os outros lugares. Dos vinte e um desenhos, doze foram feitos de lugares do meu prédio.

Questões mais puramente relacionadas à cor passaram a me interessar na pintura italiana do Renascimento. A qualidade tonal e um tipo de cor da atmosfera e da paleta mediterrânea me atraíram. Observando as Stanze di Raffaello com minha companheira, ficamos extremamente curiosos e impressionados por alguns tratamentos de luz e sombra, principalmente no tratamentos dos panos: ali estava um tipo de passagem de cores, de colorização complementar de claro e escuro que são atribuídos como desenvolvimento técnicos muito posteriores, da época do Impressionismo. Seria um desconhecimento nosso, um resultado do envelhecimento dos pigmentos ou algo proposital? De qualquer forma, encarando isso como sobrevivência , me senti impelido a pesquisar essas paletas empiricamente.

A imagem não é nem um evento simples na história, nem um bloco de eternidade insensível ao seu tempo, é as duas coisas simultaneamente. A consequência dessa dupla temporalidade é que — fora da ideia simplista de imagem como documento ou como idealismo de um momento puro — ela torna-se necessariamente anacrônica e produtora de significados em termos de sintoma. A exploração das relações e conexões das obras de arte se expressa em termos de montagem e de sobrevivência.

"La Scuola di Atene" (detalhes), Raffaello Sanzio

Na noção de sobrevivência, penso no reaparecimento de um Outrora latente no agora: trechos de conteúdos que atravessam épocas e imagens, gestos que insistem em reaparecer ao longo da história da arte e do pensamento. Pensar em sobrevivência é sempre pensar em montagem — uma articulação que não estabelece entre seus itens nenhuma relação causal ou de fim último, mas sim uma relação de mútua influência— e, mais uma vez, é pensar em anacronismo.

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Lee Ufan, "From-Point" (1974), 160x130cm

Algum tempo antes já vinha usando a aquarela para algumas experiências não-figurativas. Havia sido apresentado por Jailton Moreira para um grupo pintores coreanos dos anos 70, chamado Dansaekhwa, que criava primordialmente pinturas monocromáticas em que o que parece ser a questão fundamental era o modo de aplicação da tinta na tela. Ao mesmo tempo, Jailton me apresentou um aquarelista que faz trabalhos abstratos do qual não lembro o nome e o qual vi muito rapidamente. Ao escrever esse texto, escrevo um email para Jailton perguntando o nome do artista: Callum Innes. Com essas coisas perdidas em algum lugar da memória, comecei a testar algumas abordagens que não foram muito longe até que, saindo do escritório onde trabalhava na esquina da Carlos Gomes com a Plínio Brasil Milano, olhei para uma série de prédios comerciais espelhados, refletindo o céu. Cada janela, por estar semi-aberta, refletia o azul de uma maneira, com tons muito parecidos, ainda que diferentes. Pensei que aquilo poderia dar uma boa pintura. Voltei para casa, peguei uma chapa de um exame velho de raio-x, desenhei uma grade e recortei alguns dos retângulos. Coloquei sobre meu caderno e tentei reproduzir a impressão que a fachada envidraçada havia produzido em mim pouco antes.

Gostei do resultado e logo pensei que aquele procedimento poderia ser usado para investigar as pinturas renascentistas que vinham atraindo minha atenção. Recuperei algumas fotos de viagem que havia feito e passei a reproduzir as paletas dessas fotos. Achei que havia um caminho, mas ainda não era exatamente aquilo: ainda faltava algum tipo de sistema ou restrição. Comecei a tirar fotos de paisagens, pintá-las em um caderno, anotando as coordenadas geográficas, a data e a hora de finalização. Assim, conseguia um instantâneo exato das cores daquele espaço-tempo, conseguia capturar a cor daquela atmosfera. Porém, era a cor processada através das lentes e do algoritmo de um aparelho digital — meu celular, no caso — o que passou a me inquietar.

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Lembro-me que só recentemente descobri um trabalho incrível de Ed Ruscha, chamado Every building on the Sunset Strip (1966), em que o artista tira fotos sequenciais dos dois lados de uma rua de Los Angeles e cria com elas um longo panorama, montado em uma espécie de livro de artista sanfonado. Esse trabalho se relaciona a posteriori com o que venho fazendo em Vago, pelo deslocamento, por uma espécie de catalogação de um percurso e, evidentemente, pelo formato do caderno.

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Callum Innes, "Cerulean Blue Tone / Quincadrone Red" (2015)

Desde muito cedo em minha reaproximação do desenho, os processos repetitivos e os motivos irrelevantes apareceram como uma constante em minha prática, como quando sentava diariamente no exato mesmo local da sala de meu apartamento para desenhar um canto formado pelo encontro de um marco de porta com o parquet, produzindo um caderno inteiro de desenhos. Restringir o tema e liberar as abordagens talvez possa ser a estratégia mais recorrente da minha produção.

Lendo o livro de Calvino, identifiquei várias questões que vinham me perseguindo em minha prática poética. Comecei a pensar em desenvolver trabalhos que se relacionassem com o texto e, então, percebi: essas aquarelas de paisagem já tinham uma relação estreita com o livro. A ideia de viagem, de deslocamento, a relação entre precisão e vagueza, tudo já estava ali colocado. E foi aí que surgiu o trabalho chamado Vago.

Outros nós

As ideias de "sobrevivência", "anacronismo", "sintoma" e o tipo de abordagem do trabalho de arte que faço aqui estão inspirados em:

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

___. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

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