Fotos: Otávio Castedo

Entre-notas de um texto inconcluso

Um apanhado de notas sobre minha produção recente, que estabelece um diálogo com o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.

Marcelo Armesto Dos Santos
atrito
Published in
6 min readSep 29, 2017

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Uma arqueiro dispara em direção a um alvo. Para alcançar a distância até ele, a flecha precisa percorrer metade do caminho. Para chegar até a metade do caminho, tem de alcançar a metade da metade do percurso. Antes ainda, a metade da metade da metade. E assim, infinitamente. À flecha seria negada a possibilidade do movimento e ela ficaria suspensa nas mãos do atirador, sem jamais chegar ao seu alvo. Esse é o Paradoxo de Zenão.

Em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, o personagem principal precisa entregar uma mala sem saber para quem, onde ou por quê. Sabe apenas que, por meio de um encontro fortuito, vai dizer uma senha e identificar o destinatário. Sua tarefa não é cumprida e a mala não encontra seu destino. Não por acaso, a senha é “Zenão de Eleia” — o filósofo por trás da criação do paradoxo de Zenão. Identifico aí uma metáfora poderosa sobre meu fazer artístico: a arte como algo que se carrega sem necessariamente saber o porquê, de qual matéria ela é feita ou qual exatamente é seu conteúdo. O artista — assim como o personagem da história — é impelido pela necessidade de cumprir uma tarefa sem ter total compreensão de seu propósito e sem ter possibilidade de obter êxito nessa empreitada, a não ser por aproximações. À medida que o destino se aproxima, a distância final a ser percorrida se divide infinitamente e a tensão entre pergunta inicial e resposta nunca se resolve.

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O livro de Calvino como potencializador de uma série de trabalhos em que cada um se relaciona com a obra de forma particular.

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Vago é em um caderno composto de uma série de aquarelas sobre meu entorno. Utilizando sempre o mesmo grid, faço uma espécie de catalogação subjetiva das cores da paisagem e registro em cada desenho as coordenadas geográficas, data e hora de sua finalização. É um exercício de abstração da paisagem, transformada em uma matriz de cores. É, também, o entendimento do desenho como registro de um percurso e do espessamento de um momento. Como uma paisagem vista através das janelas embaçadas de um trem.

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Como fazer um desenho | texto que revela menos com o que exprime do que pelo que oculta?

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Desenhar é navegar no espaço operador “e”: “isso e isso”, “aquilo e isso”, a conexão de objetos e objetos, de espaços e espaços, de assunto e objeto, de objeto e espaço, conhecido e desconhecido, para exercitar o poder tornar-se possível.

Passando de novo sob a nogueira-do-japão, eu disse ao senhor Okeda que, na contemplação da chuva de folhas, o fato fundamental não era tanto a percepção de cada uma das folhas, mas sim a distância entre uma folha e outra, o ar vazio que as separava. (CALVINO, 1999, p. 248)

Preciso é uma série de 1001 desenhos de uma folha de ginko biloba. Um exercício sobre as possibilidades do olhar. Encarna a ideia de desenho como esforço, como tarefa, como estratégia de repetição e de sobrevivência. Cada desenho em Preciso é a mola propulsora para uma nova abordagem, para mais um dia de trabalho.

O deslocamento em Vago dá origem a um trabalho fluido, diáfano, uma caminhada sem intenção, pura deambulação, sem início nem fim, apenas duração. Preciso libera o procedimento, as abordagens gráficas. Vago é um deslocamento físico, Preciso um deslocamento perceptivo e intelectual.

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A âncora, que, tão ligada à ideia do atracar, de fixidez, é, contudo, responsável também pelo zarpar, pela possibilidade do movimento. O movimento como ilusão dos sentidos.

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Pentimenti, terceiro trabalho da série, é uma investigação do paradoxo de Zenão através de estratégias visuais e o textuais. O trabalho toma a forma de um arquivo de anotações e desenhos, como registro da busca por entender o paradoxo: estudos matemáticos, proposições de trabalhos artísticos, estudos filosóficos. Assim como a flecha não chega ao alvo, minha tentativa de esgotar as abordagens do problema nunca chega ao êxito.

[Sobre a obsessão de Calvino por conseguir abarcar todas as variantes e alternativas] Para combatê-la, procuro limitar o campo do que pretendo dizer, depois dividi-lo em campos ainda mais limitados, depois subdividir também estes, e assim por diante. Uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto. (CALVINO, 1990, p. 83)

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A tensão constante entre o infinito e o indefinido. O infinito, inconcebível em escala humana, torna-se aterrador e, como resposta nos contentamos com o indefinido, iludindo-nos de que esse é ilimitado. A série, a fragmentação, o limitado, a análise combinatória, justamente como respostas humanas possíveis para lidar com a ideia de infinito.

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Pentimenti: arrependimento, em italiano. E, principalmente, as alterações feitas no desenho enquanto o trabalho está sendo produzido, deixando a marca das dúvidas, das indecisões, das mudanças de plano. Repensar. Reescrever.

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Vago: os campos de cor como palavras, os desenhos como parágrafos, o caderno como texto.

Preciso: os desenhos como palavras. O trabalho como texto.

Pentimenti: o texto como desenho.

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O não finito. Em Vago, pelo caráter interminável do percurso, pelo grid que poderia ser sempre continuado; em Preciso, por conta de uma busca de exercitar possibilidades gráficas inesgotáveis; em Pentimenti, por uma busca de conhecimento que não tem possibilidade de se finalizar. Como no romance de Calvino, onde as histórias começam e nunca se concluem.

Mas como determinar o momento exato em que começa uma história? Tudo começou desde sempre, a primeira linha da primeira página de todo romance remete a alguma coisa que já sucedeu fora do livro. (CALVINO, 1999, p. 157)

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O trabalho como desenho dos espaços, das distâncias, das entrelinhas, do não dito: desenho das passagens entre cores em cada etapa de Vago e depois entre os próprios desenhos; desenho dos espaços entre as possibilidades do olhar em Preciso; desenho dos espaços entre as abordagens de um problema em Pentimenti; e o desenho dos espaços entre os trabalhos Vago, Preciso e Pentimenti.

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Onde está o fim de um trabalho que incorpora o não finito como poética?

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[…] talvez tenha sido engolido pelo abismo aberto na brusca interrupção do romance. (CALVINO, 1999, p. 88)

REFERÊNCIAS

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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