O fracasso como processo e os sistemas como promotores da criação

Marcelo Armesto Dos Santos
atrito
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9 min readMar 14, 2018

CAP. 0 — PREFÁCIO

Meu trabalho envolve imagens; parte ou, de alguma forma, sempre volta a elas. E, como forma de manter em mente sua primazia em minha pesquisa poética, comecemos por uma delas.

Este caderno é uma espécie de índice desorganizado, de manual ao contrário, de repositório de perguntas, de ideias e de trabalhos que partem todos de um centro comum: o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.

Vamos a um trecho dele:

Se penso que devo escrever um livro, todos os problemas de como esse livro deve ser e como não deve ser me bloqueiam e me impedem de ir adiante. Se, ao contrário, penso que estou escrevendo uma biblioteca inteira, sinto-me imediatamente aliviado: sei que qualquer coisa que eu escreva será integrada, contradita, equilibrada, amplificada, sepultada nas centenas de volumes que me resta escrever.

Ter como projeto escrever não um livro, mas uma biblioteca inteira.

[O FRACASSO ESTÁ DESENHADO]

Falando um pouco sobre o texto de Calvino, no seu centro parece estar o que podemos chamar de “crise da representação”: a falta de espaço para os tradicionais textos literários e lineares em um mundo fragmentado, múltiplo, acelerado.

No capítulo homônimo ao romance, o personagem principal precisa entregar uma mala sem saber para quem, onde ou por quê. Sabe apenas que, por meio de um encontro fortuito, vai dizer a senha e identificar o destinatário. Sua tarefa não é cumprida e a mala não encontra seu destino. Não por acaso, a senha é “Zenão de Eleia”. O romance volta ao leitor — que é colocado como personagem dentro do texto — quando o livro que ele estava lendo é interrompido por um problema de impressão. A partir dali, a busca por continuar a leitura se transforma em uma série de textos começados e não finalizados dentro do próprio livro, cada um contendo o seu próprio núcleo narrativo.

Voltemos então aos trabalhos, e comecemos.

CAP. 1 — A primeira contradição

Começar. Foi você quem o disse, Leitora. Mas como determinar o momento exato em que começa uma história? Tudo começou desde sempre, a primeira linha da primeira página de todo romance remete a alguma coisa que já sucedeu fora do livro. (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

Esse é um fragmento de um dos trabalhos — chamado Pentimenti: é um projeto para um alvo de vidro.

Coloquemos o livro no centro desse alvo.

Mirando esse centro, venho desenvolvendo uma série de trabalhos, pensados sempre em pares: dois objetos que se opõe, que se contradizem, que se colocam em tensão. Então, a partir desses dois trabalhos, é gerado um novo par, com perguntas que se opõe ao seu par formador.

[O SISTEMA ESTÁ CONFIGURADO]

A primeira dupla de trabalhos são Vago e Preciso.

VAGO

É um caderno composto de uma série de aquarelas sobre a paisagem. Utilizando sempre a mesma grade, faço uma espécie de catalogação subjetiva das cores de meu entorno. Registro em cada desenho as coordenadas geográficas, a data e a hora de sua finalização.

Envolve, para mim, perguntas sobre como o desenho pode ser abstração da paisagem, o registro de um percurso e a busca por tornar o instante mais espesso, além de exercitar o desenho como observação direta.

Alguém olha pelas janelas toldadas do bar, abre a porta de vidro, e no interior o ar é nevoento, como se visto através de olhos míopes ou irritados por algum cisco. São as páginas do livro que estão embaçadas como os vidros das janelas de um velho trem; sobre as frases paira uma nuvem de fumaça.

PRECISO

É uma série de 1001 desenhos de uma folha de Ginkgo biloba. Um exercício sobre as possibilidades do olhar, sobre as possibilidades de abordagens gráficas de um mesmo assunto. É uma reflexão sobre o desenho como esforço, como tarefa, como estratégia de repetição e de sobrevivência.

Passando de novo sob a nogueira-do-japão, eu disse ao senhor Okeda que, na contemplação da chuva de folhas, o fato fundamental não era tanto a percepção de cada uma das folhas, mas sim a distância entre uma folha e outra, o ar vazio que as separava. O que me parecia ter entendido era isto: a ausência de sensações em grande parte do campo perceptivo é a condição necessária para que a sensibilidade se concentre espacial e temporalmente, assim como na música o silêncio de fundo é necessário para que sobre ele se destaquem as notas.(Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

Esses dois trabalhos partem de ideias em constante aproximação e afastamento.

Algumas aproximações. Procedimentos restritos: a grade, o retângulo, a observação direta em Vago; a restrição a apenas uma imagem que dá origem a 1001 desenhos em Preciso.

Eles envolvem sempre a ideia de não finito: em Vago, pelo caráter interminável do percurso — sem começo ou fim, apenas duração -, pela grade que poderia ser sempre continuada; em Preciso, por conta da uma busca por exercitar possibilidades gráficas inesgotáveis, pelo próprio número de 1001 desenhos — como na coleção de contos árabes das Mil e uma noites.

Cada um parte de uma proposição simples, de um sistema que, após colocado em movimento, pode permanecer em inércia: a grade e a catalogação subjetiva de cores em Vago; os dois desenhos sobrepostos, um que parte de um traçado e o outro de observação em Preciso.

Alguns afastamentos.

Vago é um deslocamento físico, Preciso um deslocamento perceptivo e intelectual. Vago é um exercício de não-figuração, Preciso, de figuração.

Essas oposições e categorizações, se olhadas detidamente, podem ser invertidas. O que nos leva a falar sobre contradição e antinomia.

Antinomia e contradição podem ser definidas como: a antinomia tende à resolução, já que é composta por dois termos radicalmente incompatíveis; a contradição é feita de parcialidades e de aspectos, em que os termos são parcialmente incompatíveis e tem mais a ver com uma configuração, com um estado de coisas que se coloca em suspenso, em tensão. Vivemos, talvez, sob uma época do reinado da primeira. Porém, o campo da arte, do pensamento, da reflexão, ainda são os lugares onde podemos exercitar a segunda.

CAP 2 — O terceiro elemento?

Podemos aproximar esse entendimento de contradição da ideia de neutro, como algo que poderíamos, por um lado, entender como “nem isso, nem aquilo”, como uma escolha ativa e consciente por nenhum dos dois lados, mas podemos entender também como o “isso e aquilo”, como a violência de movimentos contraditórios que não se apaziguam enquanto — aqui falando de arte — o trabalho mantém seu status de trabalho, enquanto ainda está em funcionamento e não foi cooptado ou desmontado por forças externas (do capital, do mercado, da crítica positivista, etc).

O neutro é o desconhecido, mas o desconhecido que não é nem objeto nem sujeito e, principalmente, não é o desconhecido no sentido do “ainda não conhecido” ou do “impossível de conhecer”, É o desconhecido — na arte, na poesia, no pensamento, apresentado como desconhecido e não como desvelado; indicado, mas não revelado. O desconhecido se mantém em uma relação neutra, nem revelado pela luz, nem ocultado pela escuridão. Nem lucidez, nem alucinação. O fora absoluto-exterior como o ponto mais íntimo de um trabalho, o extremo limite do espaço como o lugar onde o autor/artista deve se manter para que em algum momento, tudo comece.

Desenho como/como desenho

Entendo o trabalho como desenho dos espaços, das distâncias, do que está entre, do não dito: desenho das passagens entre cores em cada etapa de Vago e, depois, entre os próprios desenhos; desenho dos espaços entre as possibilidades do olhar em Preciso.

Falo aqui da arte, e especialmente do desenho (já que me é mais próximo) — como prática ideacional, em que pensamento-em-ação e ação-como-pensamento são duas facetas simultâneas de uma mesma prática. Desenho como verbo conjugado no gerúndio — pensando — e não particípio — pensado. Desenhar seria navegar no espaço operador “e”, “isso e isso”, “aquilo e isso”, a conexão de objetos e objetos, de espaços e espaços, de assunto e objeto, de objeto e espaço, conhecido e desconhecido, para exercitar o poder tornar-se possível.

É daí, creio, que deriva a potência do desenho e sua importância em minha pesquisa: o desenho como campo adequado para pôr em atrito ideias conflitantes, para discutir o que é vago em minha prática — no sentido de vacância, de ambiguidade e de rarefação — para pensar na arte como iminência.

Colocando-se em oposição a esse par, surge o próximo par de trabalhos.

CAP 3 — Uma distância intransponível

Pentimenti

É uma investigação do paradoxo de Zenão através do desenho: uma flecha, para atingir seu alvo, precisa antes percorrer a metade do caminho entre o arco e seu destino; para alcançar a metade do caminho, ela precisa antes percorrer a metade da metade e, assim, ao infinito, em uma eterna divisão que a faria parar no ar e cair aos pés do atirador. O trabalho toma a forma de um arquivo de anotações e desenhos, como registro de estratégias para entender o paradoxo: estudos matemáticos, proposições de trabalhos artísticos, estudos filosóficos. Assim como a flecha não chega ao alvo, minha tentativa de esgotar as abordagens do problema nunca chega ao êxito. O trabalho coloca em tensão a ideia de desenho como rascunho e como produto final, como registro de um processo, como um campo de anotação e de catalogação.

CAP 3.5 — O fracasso aceito

É a ideia de fracasso como pressuposto do processo. Durante minha pesquisa poética, à medida que o destino se aproxima, a distância final a ser percorrida se divide infinitamente e a tensão entre pergunta inicial e resposta nunca se resolve. É desse devaneio, ou do valor de verdade dessa fantasia no confronto com um certo “princípio de realidade” que vejo o valor do impulso artístico para meu trabalho. Essa fantasia utópica obtém seu sucesso não por conseguir ultrapassar esse princípio de realidade, ou enganá-lo, mas justamente pelo que ele revela desse princípio, por demonstrar o que sou incapazes de desejar/pensar/criar. É por conta disso que, ao falar da utopia, pode-se dizer que o fracasso é sua vocação. É a imaginação utópica que nos faz ver o que não podemos imaginar, porém, nos dá a ver não por sua matéria, mas sim por seus buracos, através de suas faltas.

Identificar uma fronteira ou chegar em um limite, eis aí uma ideia de fracasso. Chegar no limite da imaginação, da capacidade de entendimento de um problema, das possibilidades de produção materiais. Ainda assim, encontrar o limite é empurrar o entendimento do problema à frente, mesmo que na ordem do infinitesimal. Encontrando o limite, a situação é delimitada outra vez, agora contendo o limite dentro de si. Podemos pensar o processo utópico como um desejo de desejar, como um conjunto de narrativas sem precedentes.

CAP 3.7 — e começo aqui e meço aqui este começo…

A repetição tem papel fundamental nesse desejo de desejar em meu trabalho. Vivemos em uma tensão constante entre o infinito e o indefinido. O infinito, já que inconcebível por nós, torna-se aterrador e, como resposta contentamo-nos com o indefinido, iludindo-nos que esse é ilimitado. O limitado — o sistema, a série, a análise combinatória — pode aparecer justamente como uma resposta humana possível para lidar com a ideia de infinito.

Veio-me a idéia de escrever um romance feito só de começos de romances. O protagonista poderia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o novo romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso, e ele não consegue ir além do início… O leitor volta à livraria para trocar o volume… (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

CAPÍTULO 3.85 — O sistema retorna

A utilização de um sistema em minha prática é uma forma de criar uma inércia para o trabalho que, uma vez colocado em movimento, tende a seguir em produção. É uma forma de dar vazão a iniciativas paralógicas, menos conscientes, a que o próprio fazer produza mais energia para sua execução.

Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada que empunha a pena e escreve… Mas o que moveria essa mão? A multidão anônima? O espírito dos tempos? O inconsciente coletivo? Não sei. Não quereria anular a mim mesmo para tornar-me o porta-voz de alguma coisa definida. Só o faria para transmitir o escrevível que espera para ser escrito, o narrável que ninguém narra. (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

E onde isso continua? Existe um ponto de chegada? Onde ele termina? Onde continua o desenrolar desse trabalho?

“[…] talvez tenha sido engolido pelo abismo aberto na brusca interrupção do romance.” (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

Outros nós

Antinomia e contradição; utopia como fracasso

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Editora Ática, 1997.

Neutro

BLANCHOT, Maurice. The infinite conversation. The University of Minnesota, 1993.

________. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005

Infinito vs. indefinido

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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