Sim, isso é apenas um dos recortes (imagem feita por Ricardo Oliveira)

Recorte de trabalho | Pesquisa sobre autistas na pandemia de Covid-19

Ricardo Oliveira
autistascontracovid19
7 min readJul 17, 2020

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Bem, caso você não saiba, faço parte do comitê de autistas contra a Covid-19, que é um grupo que está fazendo algumas pesquisas relacionadas aos autistas dentro do contexto da pandemia, além do manifesto que será desenvolvido com as demandas desses autistas e que vão ser compartilhadas com o poder público. E o que venho mostrando hoje é uma pequena parte dos resultados da primeira pesquisa que eu e o restante do grupo fizemos, sendo uma pesquisa direcionada somente aos autistas.

Cada um ficou responsável por um tipo de recorte, teve gente que pegou por sexualidade, gênero, idade, local onde mora, ou seja, são várias formas de analisar os mesmos dados, assim tratando com mais carinho as principais necessidades de nós autistas. No meu caso mais especificamente, peguei o recorte do mercado de trabalho, o que inclusive falarei mais sobre futuramente.

Vamos ao que interessa

Houve uma pergunta no questionário que pedia a quem estava preenchendo se a pessoa trabalhava atualmente, sendo uma resposta sendo apenas “sim”, ou “não”. Quem respondeu positivamente, tinha de preencher um campo extra dizendo qual era seu trabalho, sendo inclusive um ponto que me deu um pouco mais de trabalho, que obviamente consegui superar, afinal, você está lendo esse recorte, não é mesmo?!

QUEM NÃO TRABALHA

Começando pelo mais simples, é sobre as pessoas que não estão trabalhando atualmente, o perfil delas é o seguinte: morador do estado de São Paulo; homem hétero e branco, com idade entre 18 e 29 anos, mora com 3 ou mais pessoas, além de possuir ensino superior.

Tem um diagnóstico formal, não faz uso de plano de saúde, mas faz acompanhamento médico ou psicossocial, porém desde o início da quarentena não teve esse tipo de acompanhamento, a maioria diz haver bastante mudança na sua rotina por causa do covid-19.

Em relação a família, a maioria respondeu que eles aceitam sua condição, mas dizem que já sofreram, em algum momento da vida, discriminação pela mesma condição, por último, grande parte diz não conhecer o modelo da neurodiversidade.

Vou me atentar aos pontos que ficaram bastante evidentes. Começando pelo fato de que o autista possui formação, porém não possui emprego, o que acaba gerando uma conclusão de que formação superior não significa entrada fácil para o mercado de trabalho, principalmente se levar em conta que a maioria dos autistas que responderam ao questionário não estão trabalhando atualmente.

Sobre as demandas que os autistas dizem que é preciso ter no manifesto, a mais evidente é relacionada ao trabalho, seguido, respectivamente, por atendimento médico e psicológico. Vou detalhar essas 3 demandas agora.

Trabalho

Devido a crise econômica, seguido da pandemia, fez com que a procura por emprego ficasse muito mais dificultada para os autistas.

Tiveram pessoas que acredito já terem experiências profissionais, que disseram haver uma dificuldade na adaptação no próprio ambiente de trabalho, pois alguns autistas têm disfunção executiva, que resumidamente é a dificuldade em manter a atenção sustentada e seletiva. Há inclusive autistas que reclamam em relação ao trabalho home office, sobre essa questão, o home office é um desafio para todos, pois lida muito com a dificuldade na concentração devido, acredito eu, as redes sociais, porém, se as redes sociais realmente são um fator chave para esse problema, isso pode ser revelado em futuros questionários.

Um ponto bastante importante de mencionar é o uso, direto ou não, do termo mascaramento, que é quando um autista precisa colocar uma máscara neurotípica para se adaptar ao ambiente e não sofrer discriminação, o que gera uma sobrecarga sensorial, levando a uma posterior crise. No contexto do trabalho, esse assunto estava junto das respostas.

Questões médicas ou psicológicas

Algo que é bastante intenso, entre os comentários sobre as demandas para o manifesto, foi sobre pautas médicas, psicológicas, ou mesmo relacionadas a um desses dois pontos.

Sobre o atendimento, é importante lembrar que o autista precisa ter atendimento, pois há condições coexistentes que acabam influenciando na vida da pessoa, uma delas são as tentativas de suicídio, lembrando é claro do número do CVV, o Centro de Valorização da Vida, que é 188. A dificuldade em ter atendimento médico e psicológico é um problema que é citado por boa parte das pessoas que não possuem emprego. O contexto da pandemia que está proporcionando esta enorme dificuldade, visto que muita gente está utilizando o serviço médico, além do fato de que os profissionais de saúde são grupo de risco, e que são os que mais lidam diretamente com pessoas infectadas pelo covid-19. Além disto, há uma dificuldade em marcar consultas, muito por conta do horário reduzido que os médicos estão liberando para atendimento.

Há também o fato da própria família do autista, em alguns casos, contribuir para a piora na saúde psicológica, visto que o fator político-moral é citado em alguns casos, sendo mais detalhadamente a não proteção correta em relação a pandemia. Lembrando que, no geral, a família aceita a condição do autista, porém não com uma margem tão grande.

Ainda existe a questão do racismo, interseccionalidade essa que prejudica na obtenção do laudo, ou mesmo no tratamento que o médico faz em relação a seus pacientes.

Bem, essas são as informações que tive em relação a quem não trabalha, agora vamos traçar um perfil e analisar acerca das pessoas que estão empregadas no momento.

Quem trabalha

Agora vamos para a segunda parte, que são as pessoas que responderam estar trabalhando, mesmo com a pandemia. E o perfil é um pouco diferente do primeiro grupo. A maioria das pessoas moram no estado de São Paulo, são mulheres cisgênero e possuem idade entre 29 e 40 anos.

Moram com 3 ou mais pessoas, com titulação superior, possuindo diagnóstico formal, possui plano de saúde e faz uso regular de atendimento médico, porém não está conseguindo atendimento médico ou psicossocial desde o início da quarentena.

Esse grupo considera que a pandemia mudou drasticamente sua rotina, com uma família que, no geral, aceita sua condição de autista, também é um grupo que diz ter sofrido, em algum momento da vida, discriminação, e como o primeiro grupo, não conhece o modelo da neurodiversidade.

A maioria das profissionais são das áreas da educação, tecnologia da informação, e design, sendo uma maioria da esfera pública.

Há uma certa predominância das mulheres autistas no mercado de trabalho, e mesmo com o fato de trabalharem, isso não diminui a mudança drástica que tiveram por causa da pandemia, visto que, pelas restrições colocadas, muitos profissionais migraram para o home office para continuarem trabalhando nas empresas.

Agora sobre as demandas que esse grupo possui para serem colocadas no manifesto, não há grandes diferenças em relação ao primeiro grupo. Basicamente é sobre questões relacionadas a trabalho, além de pautas médicas e psicológicas. Você conseguirá ter uma dimensão melhor lendo a seguir os detalhes.

Também é relacionada ao trabalho

A primeira demanda que vejo é sobre a reserva de um horário, mesmo durante o trabalho, justamente para se autorregularem, ou mesmo para a realização de algum tipo de terapia.

Outra questão que foi citada é que, mesmo sendo pessoas empregadas, há a demanda de mais vagas de trabalho destinadas a pessoas autistas e que suas especificidades sejam respeitadas. Isso mostra, pelo menos em um primeiro momento, que o mercado de trabalho não é aberto ao autista. O que acaba em outra demanda, que é o preconceito no próprio ambiente de trabalho, pois de acordo com os resultados, o autista sofre discriminação, havendo uma invisibilização nos casos do grau 1.

Há o ponto também que é interessante, e é relacionado a app de comunicação, como o Whatsapp, há uma reclamação sobre a obrigatoriedade de acompanhar grupos de trabalho.

Existe também questões trabalhistas em pauta, onde responderam que é preciso fomentar o direito trabalhista do autista, além de programas que ajudem o autista a entrar no mercado de trabalho

A hipersensibilidade do profissional autista também foi algo apontado por alguns.

Também tem relação com questões médicas ou psicológicas

A primeira informação que consigo extrair dos resultados é em relação a dificuldade do profissional em diagnosticar o autista, a justificativa é de que os médicos estão desatualizados, além do próprio médico duvidar das características do paciente. Além disso, alguns dizem que as consultas são caras, o que impossibilita de dar andamento no processo do laudo, ou mesmo em continuar a se consultar.

Algo que foi colocado por boa parte dos autistas é a falta de acessibilidade que os espaços médicos têm. A dificuldade no acesso a comunicação alternativa também foi apontada por alguns.

Outras demandas apontadas são sobre acesso a consultas e receitas médicas online, pois de acordo com as respostas, há uma dificuldade em qualquer um desses casos; além do acesso preferencial as consultas, tanto médicas, quanto psicológicas.

Resultado parcial

Se juntarmos os dois grupos, as principais demandas que existem e provavelmente serão colocadas no manifesto, são relacionadas a dificuldade em conseguir emprego pelo preconceito ocorrido durante os processos seletivos, e quem trabalha, é a questão da acessibilidade e respeito à especificidade do autista. No atendimento médico, há um apontamento sobre a desatualização do profissional, junto com um desrespeito e descrédito ao que o próprio autista diz, levando a uma dificuldade enorme no diagnóstico. Problemas relacionados a falta de acessibilidade foi apontada nos campos trabalhista, médico; e psicológico.

Com isso, encerro meu recorte relacionado ao trabalho da pesquisa. Continue acompanhando, afinal, em breve, haverá mais atualizações, com cada membro do comitê publicando uma parte diferente dos resultados, a partir da análise feita por cada um. Até a próxima e deixe suas palmas!

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Ricardo Oliveira
autistascontracovid19

É autista, ativista, comunicólogo e especialista em Mídias e Redes Sociais. Produz conteúdo para o canal Autismo Pensante no YouTube, e membro da Abraça.