CARTAS PARA ALGUÉM!

Arte Escrita
anevasconcel
Published in
5 min readJul 24, 2022

Carta 01 - 24 de julho de 2022.

Editada pela autora. (Banco de imagens gratuito.)

São constantes os momentos na vida em que chegamos a um determinado espaço e nos encontramos com outros “nós”, vidas que parecem ser parte de nossa existência desde sempre, ainda que essa possibilidade “desde sempre”, neste aqui e agora, jamais tenha acontecido antes pelos olhos do presente.

Agrada-me o pensamento de laços espirituais para dar sentido ao que não pode ser compreendido das relações de afetos e desafetos, nem sempre com razões para existir. Podemos amar e odiar sem justificativa. Todos nós precisamos encontrar sentido para organizar o inexplicável; de algum modo, nossa mente é cheia de ideias, ordem, caos, desespero, guerra e paz.

A paz deve ser procurada constantemente porque ela não é uma forma estática ou um elemento que nos compõe como um braço, ou uma perna. A paz é algo que está a se mover e a se distanciar, quanto mais distante, mais difícil é alcançá-la; e é assim que as guerras começam. Em certos momentos, a loucura mais coerente é o desgarrar-se de tudo e sair em busca da paz. Algumas vidas tentam alterar o que acontece ao redor da existência global por meio de táticas e de jogos cujo único objetivo é derrotar e vencer, como se evoluir significasse vencer por meio de derrotas alheias.

A maioria dos seres esquece de que a soberania terrena não passa de uma ilusão elaborada pela mente imersa em desejos humanos, que chegam a atravessar a ética do bom relacionamento com outros da mesma espécie que se encontram em espaços distantes. Mas isso é uma reflexão que surge momentaneamente quando me pego olhando para a vida que se veste de tempo.

Quero contar que, no presente momento desta minha existência, está tudo bem, melhor do que pensei, se quiser saber. Hoje é 24 de julho de 2022, estou em São Paulo, em meu espaço alugado.

Que loucura é essa coisa do tempo!

Onde estou é bastante tranquilo. Os vizinhos são um rapaz que se mudou recentemente e Maria. Ela tem conversas aleatórias comigo, às vezes me faz rir mesmo sem intenção. Sua figura é cômica, e também me irrita com tantas reclamações que atravessam sua garganta. Um caso de bipolaridade; consigo enxergar suas crises de humor saindo pelos olhos.

Maria admirava seu jabuti hoje, e parei para observá-lo quando me dei conta de que é um bicho muito peculiar. Ele caminhou pelo corredor da pensão, indo e voltando, parecia até um bicho atleta, mas escondia-se no interior do casco, seu escudo protetor. Imaginei que poderíamos, assim como o jabuti, ter um casco, além de nos proteger dos riscos diários na vida que é cheia de imprevistos. Poderíamos esconder nossas caras feias e humores indesejados.

Recebi uma sequência de fotos pela manhã, enviadas pelo “serviço de lembranças do Google Fotos”. Acho curioso rever tantas cenas de outros tempos as quais não nos damos conta no tempo presente, em nosso dia a dia. Muitas cenas revistas nos fazem ter vontade de voltar ao exato tempo em que ocorreram, mas já houve o corte de cena e o encerramento da produção. — Você deve saber como é essa sensação. Se fosse possível, retomaria algumas cenas, só para sorrir como já sorri, de um modo que senti minha alma levitar e levar meu corpo junto. Eu voltaria para algumas cenas, para todas que dão saudade, sabe?

Há um detalhe inquestionável que, de certo modo, depende da perspectiva, mas há o fato que não pode ser rompido, o tempo. Por quê? A resposta óbvia: é a vida. O tempo e a história têm propósitos evolutivos para nós e para o todo. E, pensando bem, não sei ao certo como seria revisitar tais cenas do passado, distantes ou recentes. Vale observar que alguns personagens dessas cenas precisariam sair do sono de descanso, do lugar que chamamos de eterno. Seria possível despertá-los para reviverem cenas de suas experiências já arquivadas? Isso, na verdade, penso eu, seria uma perturbação da ordem natural administrada pelo tempo.

Melhor esquecer, ao menos, algumas lembranças e deixar cada cena em seu lugar, quero dizer, no passado, onde há personagens mortos. Os vivos ainda contam com uma brecha para revisitá-las. Muitas cenas podem ser revividas quando as resgatamos, lembrando dos detalhes ao lado dos demais personagens que estavam conosco. É como reescrever a história que já foi escrita, um resgate de memória que não é exatamente igual, mas que faz reacender uma impressão, um sentimento do que será um dia o passado distante, e, também, com personagens mortos.

Dito isso, se você estiver vivo, podemos nos encontrar em algum espaço no futuro, perto ou distante e resgatar algumas cenas. E se você estiver em seu descanso, fora da matéria, terá de me aguardar por não sei quanto tempo. Por hora me contentarei com o fato das cenas estarem registradas, transformadas em lembranças. Tudo bem, Alguém?

Imagine que temos todos um casco, como um jabuti. Se o pensamento for suficientemente potente, podemos sentir o escudo saindo de nossas costas, para nos proteger enquanto caminhamos por entre as batalhas da vida. Posso sentir meu escudo em alguns dias, embora raramente precise me encolher. Foi ele que cresceu e se tornou grande o suficiente para me ocultar dos inimigos nas guerras pelas quais passei.

Tive vontade de perguntar a Maria se ela sentia seu escudo, penso que todos possuímos um escudo, embora nem todos conseguem acessá-lo. Deve haver alguns requisitos prescritos antes mesmo dos seres obterem corpos para enfrentar suas lutas na terra.

Acredito que Maria tenha acessado seu casco, são mais de sessenta anos de guerras, e ela venceu batalhas difíceis de imaginar sem a proteção de um escudo. Depois entendi seus instantes bipolares, certas guerras deixam marcas difíceis de serem deletadas, elas se tonam lembranças como qualquer outra cena na vida.

Não sei quanto a você, sei de mim. Lutei e ganhei diversas batalhas em guerras que sequer havia imaginado. O detalhe importante é que eu não era a inimiga, e isso me deu vantagem para contar com o meu casco de jabuti, e com as proezas inesperadas da vida.

Ane Vasconcel, 24 de julho de 2022.

--

--

Arte Escrita
anevasconcel

Espaço dedicado a conteúdo literário. Contos de ficção e fantasia, poesias, gotas de horror e um pouco de filosofia e artigos. De: Ane Vasconcel e Anne Twain.