HOMEM-MANEQUIM

Arte Escrita
anevasconcel
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7 min readJan 25, 2019
Banco de Imagens Gratuitas.

“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.” (Platão)

Conto: Homem-Manequim

O homem parou na entrada do espaço, passou pela porta de vidro sem notar o seu reflexo. Em posição de estátua movimentava a cabeça para todos os ângulos possíveis, perdido e à procura do que talvez nem mesmo ele sabia. Uma luz mirou em seu corpo e foi possível notar que não havia ao seu lado vestígios de sombra; a sombra, que pode ser também um reflexo de alma — e não somente do próprio corpo — se não havia sombra é possível imaginar que ela estava a passear, ajudando o homem a procurar o que tão ansiosamente seus olhos tentavam no mundo localizar.

Outras figuras passaram pela porta de vidro, algumas delas esbarraram no homem paralisado, que ainda movimentava sua cabeça, talvez, sem se dar conta dos; alguns esbarrões foram notavelmente percebidos como atos propositais, por uma irritação provocada com o impacto de uma estátua no meio do caminho, uma coisa estranha, parada, fria e adepta a uma mover mecânico de cabeça.

Pessoas entravam e ocupavam as mesas disponíveis no espaço, muitos rodeavam o homem e o encaravam como se esperassem algum outro movimento, além do da cabeça. Depois se cansavam e seguiam para as suas ocupações planejadas, certas figuras estavam apenas rodopiando sem senso, encontraram no homem uma atração peculiar, pois nada tinha ainda chamado a atenção dos rodopiadores, até a chegada no local. Paravam, sorriam, e acompanhavam os movimentos da cabeça do homem tentando ajudá-lo no que incansavelmente procurava.

Um grupo de jovens fanfarrões passaram pela porta de vidro, um dos rapazes bateu sua mão de leve no ombro do homem estático, o qual, mantendo-se na mesma posição, atraiu para si a atenção dos demais membros do grupo, com os movimentos de sua cabeça. Uma garota, incomodada com o próprio calor, retirou da mochila um elástico para cabelos e prontamente se aproximou do homem para amarrar os seus longos cabelos soltos, bem cortados, com uma franja caída para o lado direito da cabeça. Com toda a agitação do cérebro cabeludo, a garota requisitou ajuda aos seus companheiros dos quais dois seguraram o homem, um tratava de aquietar a cabeça, e outro, os braços — embora não fosse necessário –, enquanto a garota prendia os cabelos do homem em um estilo moderno de aparência rebelde, ele se continha para não atrapalhar o processo.

Após ter seus cabelos presos, o homem fora libertado por aqueles que o continham, o grupo de jovens se reuniu para observá-lo, o homem não fizera o menor movimento dos lábios em manifestação, mas seus olhos diziam tudo, tinha odiado que tivessem mexido em seus cabelos, era possível ler seus pensamentos pelos seus olhos. “Será que não sabem que não se mexe nos cabelos de quem não se conhece? Bando de desrespeitadores”.

O grupo se desfizera em passos dados pelo espaço, tornaram-se inalcançáveis aos olhos do homem, que em sua forma estátua-manequim, agora, nem mesmo a cabeça apresentava vestígios de vida. Ele Permanecera reto, pernas bem posicionadas no sentido de um caminhar em postura arquitetada, os olhos eram agora o único movimento presente no corpo, sua respiração não dava sinais de vida, talvez fosse possível ouvi-la estando mais perto, com os ouvidos muito próximos do peito frio.

O espaço se enchia, e se esvaziava, distintas personalidades caminhavam pela longa e dividida construção cultural. Uma mulher, perplexa, passou pelo homem e tropeçou acidentalmente, estava com a cabeça baixa, focada em seu aparelho celular, ao recompor-se, pediu desculpas ao homem que piscara os olhos dando a entender que estava tudo certo. A mulher, encontrando a estranheza naquela natureza, se dirigiu a estátua-manequim, um tanto receosa por não ter certeza se se tratava de um homem natural, ou de uma espécie de robô humano em exposição, coisas aprontadas pelas mentes modernas.

— O senhor precisa de ajuda? — Perguntou a mulher.

O homem piscara novamente, fixando seus olhos na figura que o encarava, esta continuou a achar estranho a situação, mas, não tendo o poder para algo fazer, deixou o homem tranquilo em seu posto, embora tenha feito um agrado antes de desaparecer. O sol aos poucos se intensificava, a mulher notara que os raios atingiam os olhos do homem e, decididamente, retirou de sua bolsa um par de óculos infantis, e o ajeitou na cabeça do homem-manequim, colocando seus olhos sob proteção, ela despediu-se com um último olhar serenamente engraçado.

O fluxo de entrada e saída pela porta de vidro não se dissipava, o homem, que já era uma atração, aos poucos se tornava uma celebridade produzida pelos curiosos que se interessavam em especular sobre a sua presença fixa ao lado da transparente porta.

Algumas crianças corriam no espaço, fugiam das repreensões dos pais e mergulhavam na liberdade de direcionar as pernas como bem entendessem. Estavam todas cheias de doces, de vários tipos e sabores, ao passar pela estátua-manequim depositaram alguns dos doces em suas mãos, uma menina encaixou sua pequena mão em uma das mãos do homem, segurando-a firme entre doces, olhava esperta para os olhos por trás dos infantis óculos, que eram bastante cativantes para uma forma adulta.

As crianças correram ao notar que os pais as alcançavam, suas risadas arteiras registravam na vida a longevidade das pequenas peças, havia muito por vir. Ser criança é estar em sintonia pura com a vida, é beber a água de um rio sem poluí-lo com os germes da mente, é ser e aceitar o rio como ele corre, sem julgá-lo por ser em alternâncias de ferocidade e por aquietar-se em certos instantes, porque o rio é a metáfora da criança que corre pelos caminhos que se apresentam diante delas, até que suas pernas se cansam e desfalecem para um descanso.

Algumas horas se passaram e a noite dava as caras, as pessoas se retiravam do espaço de cultura, o homem-manequim vestia um casaco que lhe abrigava do frio que escondera o sol, não se sabe ao certo quem foi a figura que se apiedou da estátua, parecia inconveniente, e até insano, vestir uma peça que não fazia questão de revelar sua respiração, que insistia em virar os olhos presos em um corpo parado. Sua pele era muito fria, de fato, tão fria como a textura de uma fria estátua exposta por décadas de representações simbólicas. Não há como saber qual é o propósito do homem que chegou em sua frieza quase natural, vazio, com um movimento de cabeça que se cansou de procurar entre tantas e tantas cabeças, a que lhe dedicasse um poema simples de uma verdade, com palavras purificadas, escritas por deuses que seguram o sol entre nuvens de um céu aberto, mas, o homem, a estátua, recebera do além algumas lembranças, alguns gestos de outras vidas que circulavam com suas pernas e movimentavam os seus braços, que, além dos olhos, mexiam as suas cabeças e os seus lábios, trocavam palavras com outras palavras de outros lábios.

As folhas que caiam das árvores paravam ao redor e sob os pés do homem-manequim, eram levadas por um vento que insistia em redecorar o chão. As mãos do homem-manequim estavam cheias de doces, sua cabeça estava coberta por um chapéu de um jovem que o cedeu ao despedir-se do centro de cultura, antes de partir, analisou com ar orgulhoso um pedaço do seu estilo entre as demais peças de outros exibidos pela estátua, sentiu-se representado, o homem-estátua configurava-se em uma espécie de multiculturalismo, tinha ele um par de óculos, uma blusa, um chapéu e suas finas roupas doadas anonimamente,além do elástico em seus cabelos, isso muda tudo em um corpo sem representatividade de vestimenta; seus longos cabelos que escapavam do chapéu mostravam-se ao vento e o instigava para que os levasse de um ombro a outro, mas o vento não tinha tanta força, de repente, para lutar com o elástico.

As luzes se apagaram sem pré-aviso, o homem-manequim — primeiro homem, depois estátua — teria alguns doces para alegrar a sua noite, não passaria frio, tinha um chapéu para colher folhas e esconder os seus cabelos, tinha um par de óculos para deixar a noite mais escura e buscar os sonhos que gostam de brotar em meio às trevas.

O grito de um carrinho enferrujado encostou-se ao lado do homem-manequim, que fora levado por um trabalhador do espaço de cultura, o mesmo o colocara em seu devido lugar, o retirou da porta de recepção a qual lhe propôs uma certa popularidade, e alguns benefícios, e o levou para o centro de um espaço sem teto, coberto apenas nos contornos da invisível esfera formada por árvores que a rodeavam. Um pouco de cimento foi espalhado no centro da calçada, os pés do homem-manequim foram acimentados, o trabalho da noite seria unificar pés e cimento.

O trabalhador, antes de apagar a última luz do espaço de cultura, se dirigiu ao homem-manequim, retirou uma pequena peça mecânica que fora instalada na cabeça da estátua, jogando-a em um cesto de lixo que estava próximo, ele despiu o homem-manequim de todos os seus presentes, deixou-o como em sua forma do princípio; exageradamente agiu porque até os finos panos fizera questão de rasgar, o homem-manequim refletiu, pensou que seria melhor que não houvesse qualquer luz, a noite lhe seria segura.

O homem-manequim se tornou puramente convencional, perdera o movimento que a si trazia boas almas, e em sua matéria baixou toda a história das figuras das páginas de outrora.

Anne Twain. 25 de janeiro de 2019.

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Espaço dedicado a conteúdo literário. Contos de ficção e fantasia, poesias, gotas de horror e um pouco de filosofia e artigos. De: Ane Vasconcel e Anne Twain.