MIA COUTO

Arte Escrita
anevasconcel
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3 min readJun 13, 2018
Google fotos. Edição: Ane Vasconcel, jun. 2018.

SOBRE O CONTO “A FILHA DA SOLIDÃO”

Mia Couto, como sabido, é um autor moçambicano com maior destaque na literatura africana lusófona. Em seu conto “A filha da solidão”, as características da estilística que definem esse autor são bastante perceptíveis, como a presença do cotidiano social transposto por meio da inventividade da escrita, bem como, a denúncia e/ou crítica sobre os padrões comportamentais da sociedade em relação à desvalorização das identidades Africanas e/ou Afrodescendentes.

Os aspectos linguísticos/estilísticos (criatividade/inventividade) e ideológicos (resistência, moçambicanidade, cultura africana dentre outros) podem ser encontrados, por exemplo, nos nomes atribuídos às personagens:

Meninita, Esmeralda e Shiperapera

· (dona)Esmeralda: nome que se dá a um tipo de diamante, símbolo de poder e luxo que poucos detém. O poder cria muitos opressores dos socialmente desprestigiados.

· Meninita: é uma jovem que, embora já tenha passado da infância e adolescência, não é adulta, ou seja, está na fase de transição de menina para mulher, o que envolve relacionamentos e fase de escolhas para a vida total adulta.

· Shiperapera: nome que se refere, no conto, à veterinária. “…uma veterinária do Ministério”

O autor utilizou recursos morfológicos para criar uma estrutura linguística marcante, com o acréscimo intencional do sufixo (ita) ao final da palavra menina, dando vida à personagem principal.

Inventividade na composição lexical. Ane Vasconcel, Jun. 2018

Modo sintático

“Vendo o crescer da filha”

Ao invés de seguir a ordem linear — que poderia ser: (Ela)Vendo a filha crescer –, Mia parte para a sua própria forma de tecer as palavras, quebrando a “regra” comumente usada e aceita.

O preconceito social é tematizado no decorrer do conto pelas ideologias das raças que se dizem brancas, é possível perceber tal ideologia em várias passagens do conto, como nos trechos seguintes:

· “A que homem se destinará ela, naquele afastamento da sua semelhante humanidade? ”

· “Era como nascesse em si uma alma já morta”. Ou seja, sem liberdade, presa às ideologias impostas.

Existe questões desumanas que são apresentadas, ao destacar de forma inferior as identidades distintas, como se não fossem a mesma raça: humana. A explanação ao tratamento dado aos negros é intencional, um modo de retratar ideologicamente a sociedade de um período remoto.

Em relação à Meninita, personagem que norteia o enredo do conto - a começar pelo título que já faz referência — , sua figura é um tipo de personificação dos sem liberdade, presos às imposições sociais, pano de fundo do conto, além de representar questões sentimentais calas que são típicas da idade. Meninita é nomme que nasceu do neologismo utilizado por Mia Couto, um dos traços que marca a qualidade literária desse moçambicano.

Nota-se uma intertextualidade entre o título “A filha da solidão” e o trecho do diálogo — “Não espere consolo”, ambos ditam o que é esperado do futuro de um ser que vive no circo do preconceito.

“Não espere consolo, filha: aqui só há pretalhada. ”

Sem muito a detalhar sobre o termo final da oração, fica claro um tipo de palavriado que foi muito utilizado para inferiorizar a cultura negra durante décadas.

Contudo, “A filha da solidão” possui, como toda boa história, o fato social por trás de uma ficção, portanto, não se trata de pura fantasia de uma menina em seu mundinho, existe todo um contexto histórico que marca a vida humana, fato que, infelizmente, não é ficção de mal gosto, mas uma realidade vergonhosa registrada em incontáveis livros de história.

Mia Couto (Pseudônimo de Emílio Leite Couto)

Autor e biólogo moçambicano, formado pela Universidade Eduardo Mondlane. Já ganhou alguns prêmios na literatura, escreve romances, contos, poesias e crônicas com traduções para o italiano, inglês, catalão, francês, alemão e castelhano. Seus trabalhos se dividem entre o infantil e o adulto por diversos países que se encantam com suas criações de linguagem poética, inventiva e própria.

REFERÊNCIA

COUTO, Mia. A menina sem palavra — Histórias de Mia Couto. Boa Companhia. Companhia das Letras, 2013.

Anne Twain. 2018.

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Espaço dedicado a conteúdo literário. Contos de ficção e fantasia, poesias, gotas de horror e um pouco de filosofia e artigos. De: Ane Vasconcel e Anne Twain.