A contribuição do auto-desamparo

André Monsev
Delirium Oficial
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4 min readDec 22, 2015

Enquanto as publicações de autoajuda enfeitam estantes globais e conquistam adeptos de uma espécie de “automedicação”, a possibilidade de questionar e refletir se esvaece pouco a pouco. Porque de repente ficou mais tentador crer que você pode do que entender do por quê você não pode. Isso não significa reconhecer que se é um derrotado, pois o conceito de derrota é relativo e parte do princípio “do que é felicidade” para cada um. Já o conceito único e absoluto, que afeta a todos nós da mesma forma igual sobre “felicidade”, se resume a “ser feliz”. Felicidade é, para todos nós, nos sentirmos felizes. A questão que torna disso uma encruzilhada de várias saídas (ou entradas, como você preferir), é que se é feliz de diferentes formas, para diferentes pessoas.

Em uma sociedade que me parece cada vez buscar mais uma autoafirmação baseada no “eu posso porque fulano também pode”, acabamos escanteando as possibilidades de que as trajetórias de cada um de nós são muito diferentes, assim como o propósito que sentimos pela própria vida. “Ser feliz” é claro para todos, mas “o que deve ser feito para ser feliz” é que não é. Desse modo, ficamos dando murro em ponta de faca até a exaustão. “Alguém sentiu prazer mutilando a própria mão, então aqui deve estar a resposta. Eu só não acertei o nervo certo”. Pois bem, talvez você devesse mirar o seu pé. Talvez o seu nervo certo esteja no pé. Em todo o caso, isso não vai ser encontrado nas páginas de um livro de autoajuda que prega a repetição de algo até que se torne verdade. Porque isso é uma estratégia de publicidade, somente.

É estranho perceber que às vezes tudo que você precisa fazer para se sentir bem é aceitar que você vai se sentir mal, tantas e tantas vezes. Eu só acho, mesmo, que o caminho da felicidade está mais sobre questionar, entender e constantemente desentender novamente o que você achava que tinha entendido, do que martelar um prego com “felicidade” escrito na ponta rente à sua orelha. Até porque se tudo é uma questão de contrastes, como constantemente se vê na física e química, porque não seria assim? Visto que muitas de nossas motivações (e aqui falo com todo o conhecimento absoluto de um completo leigo no assunto) são frutos de, justamente, condições químicas no nosso cérebro? A química é o que faz você sentir o que você sente.

Por isso eu acredito no auto-desamparo, muito mais do que qualquer outra coisa. Criar uma ideia que ajude a exercitar a diminuição da grandeza do seu próprio ego é uma maneira de deixar mais flácido e amortecedor qualquer alvo seu de uma flecha agressiva. Se o seu ego for atacado por alguma traição, por exemplo, a flacidez provocada por não se levar assim tão a sério ajudará a absorver a dor.

É por isso, também, que tendo a não ser muito afeiçoado da meritocracia. De algum modo (embora entenda a função dessa ‘filosofia’ em empresas que tratam competidores como iguais — se é que isso de fato acontece), a meritocracia ajuda a construir essa ideia de que tudo que resulta como errado é culpa sua. Os seus problemas são culpa sua. A depressão é culpa sua. Os fracassos são culpa sua. Isso não me parece saudável nem razoável. E nem é, visto que a meritocracia (ao menos o termo) foi criada em um livro de ficção sobre uma distopia.

Não estou propondo para ninguém aqui não assinar com autoria os próprios desastres. Estou dizendo que não vejo como positivo se jogar numa cela da prisão perpétua do fracasso e engolir a chave como punição. E, também, para entender que nada é inteiramente culpa sua. Porque nós tendemos a crer nisso, mas há — como já embasado tantas vezes e de tantas diferentes importantes obras da cultura humana — diferentes mãos invisíveis que também nos dão um empurrãozinho para lá e para cá.

Mas, é claro, você pode sempre manter o seu corpo completamente nu, sofrer as porradas de tudo que julgar agressivo e remediar a dor incomensurável com as pílulas de efeito placebo contidas nas palavras dos livros de autoajuda.

Tenho ouvido algumas vezes questionamentos sobre o A Voz de Delirium. Pessoas que não sabem o que sentir quando escutam ou leem, e isso é tremendamente confuso. É claro que é. Nosso cérebro não é lá muito afeiçoado a desconhecimentos e trata de tentar pavimentar tudo, mesmo que a estrada não tenha uma base segura e que todo aquele asfalto acabará se esvaindo na próxima tempestade. Mas esse sentimento é bom. Ajuda a pensar, questionar e eventualmente entender algo que não se entendia antes. Isso cria uma força que acaba não parando de girar. Eu só escrevo o que escrevo por não saber do que se trata. Só tenho a chance de descobrir quando leio.

Então há tanto auto-desamparo no AVdD como um próprio exercício de desestimular a si mesmo como o grande bastião merecedor de tanto por simplesmente respirar. Não num sentido niilista de que você e nada presta. Apenas num sentido humano de que estamos todos aqui, e é meio que isso aí.

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André Monsev
Delirium Oficial

ux writer/content designer, co-creator and producer of A Voz de Delirium (in portuguese!) https://linktr.ee/avozdedelirium