20 anos de Half-Life: a franquia com fãs especialmente empenhados e um mistério a ser revelado

Origem de títulos renomados e berço de desenvolvedores talentosos, a série tem significado imensurável para a cultura dos videogames.

Rafael Smeers
Aventurine Brasil
9 min readNov 22, 2018

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Half-Life Logo © by Valve | Background Image by EH5X

Para os jogadores de videogames, 1998 não seria somente o ano em que o filme Titanic estreava nos cinemas e a derrota do Brasil pela França na copa do mundo surpreendia muita gente. Naquele ano, Half-Life surpreenderia jogadores e críticos e inauguraria a atuação da Valve no mercado de games com enorme conquista de fãs.

Dois anos anteriores ao lançamento, a companhia era fundada por Gabe Newell e Mike Harrington, que acumularam uma experiência de 13 anos na Microsoft desenvolvendo versões de teste do Windows. O que experiência alguma permitiria imaginar era a profundidade que seus primeiros passos teriam no futuro; o quanto a boa execução de uma ideia envolvendo um gênero comum (ficção científica) na época contribuiria para uma expansão impressionante de negócios, além de influenciar competidores.

Vinte anos se passaram e enorme parte do significado de Half-Life para a indústria de videogames continua visível. A comunidade continua desenvolvendo conteúdo mesmo para os títulos mais antigos e recebe a atenção de sites dedicados ao cenário. Por todos esses motivos, seria impossível não aproveitar o ano comemorativo para expor alguns dos frutos da série que se tornou um ícone da esperança.

Empurrãozinho inicial

O lançamento de Half-Life no final de 1998 seria seguido de elogios inigualáveis da mídia especializada, abismada com a jogabilidade realista, gráficos impressionantes (significativamente além das limitações dos consoles da época) e narrativa sem interrupções, onde o jogador assumia completo controle do personagem. O desenvolvimento trabalhoso havia valido a pena, pois mais de 200,000 cópias foram vendidas em cerca de dois meses e em torno de 50 prêmios de jogo do ano foram recebidos. Tudo isso quando o título ainda era publicado pela Sierra e não pertencia propriamente à Valve.

Os diferenciais do título (que levaram ao surpreender dos críticos) indicavam que em pequenas variações daquela engine (GoldSource) havia potencial para muitas outras ideias e que eventualmente a concorrência teria de alcançar inovações específicas. Em março do ano seguinte, a própria Valve consolidou um exemplo do potencial da GoldSource, lançando Deathmatch Classic como um download gratuito para donos de Half-Life. O título era um jogo de tiro frenético em homenagem ao Quake Deathmatch e confirmava que com o que já havia sido feito, muitos outros jogos podiam ser criados. Era como se cada elemento ali presente fosse uma peça de LEGO e quando várias delas eram reposicionadas, uma nova construção era originada.

Algumas vezes, o uso de texturas e modelos originais de Half-Life em vez de elementos customizados criavam a sensação de não pertencimento, mas também contribuíam para o desenvolvimento prático e ágil de conteúdo.

O potencial seria colocado em prova novamente com o lançamento de Team Fortress Classic, desta vez para mostrar de verdade o potencial do Source Development Kit (SDK), kit público de desenvolvimento de conteúdo inicialmente para a GoldSrc. Contratados pela Valve, os desenvolvedores do mod para Quake “Team Fortress” portaram o jogo e com o shooter baseado em classes/personagens, conseguiram criar mais um exemplo sólido. Não demorou para que outras modificações de qualidade como USS Darkstar e They Hunger fossem desenvolvidas, entre elas, um jogo que viria a ter grande popularidade no Brasil.

Apesar do trailer ter envelhecido mal, modificações como They Hunger na maioria das vezes agiam como expansões gratuitas de conteúdo e inspirações para outros desenvolvedores, incluindo os oficiais.

Pai de um ídolo dos brasileiros

Em 19 de junho de 1999, era lançada a primeira beta pública do mod de Half-Life “Counter-Strike”. Desenvolvido por Minh Le e Jess Clife, pouco menos de um ano depois a Valve anunciava a compra dos direitos comerciais do jogo e que os desenvolvedores haviam sido contratados para criar uma versão standalone.

O resultado seria o jogo multiplayer de tiro em primeira pessoa mais famoso do mundo, que não só conquistaria os brasileiros e garantiria o lucro do mês das LAN houses, mas também passaria a contar com eles na produção de conteúdo customizado. Assim surgiu, por exemplo, o mapa cs_rio, que agradou jogadores de todo o mundo e gerou assunto, com revistas chamando o criador para ensinar a criar mapas e o levantamento público da clássica discussão “games e violência”. Em janeiro de 2008 o jogo teve até suas vendas proibidas no Brasil.

Joca Prado e Roger Sodré, criadores do cs_rio, citaram o sucesso inesperado do mapa em diversas entrevistas.

O envolvimento dos brasileiros no Counter-Strike clássico contribuiu para o grande número de jogadores brasileiros em Counter-Strike: Global Offensive nos dias de hoje. Gabriel Toledo (conhecido como Gabriel FalleN) e Marcelo David (conhecido como Marcelo Coldzera) são brasileiros, fazem parte dos jogadores mais habilidosos do cenário competitivo internacional do título e já levaram prêmios significativos como personalidade eSports e jogador de PC do ano (respectivamente). Se um jogo tivesse de ser escolhido para representar o Brasil por engajamento, esse jogo seria muito adequadamente Counter-Strike.

A semente de uma plataforma

Ao bem da verdade, a própria Steam, plataforma digital de distirbuição de games que se tornou essencial para PC gamers e tomou proporções gigantescas com o tempo, foi fruto da franquia Half-Life. A Valve teve sua história marcada pelo título em uma espécie de “antes e depois de Half-Life”, visto que inicialmente ela não havia nem mesmo o dinheiro necessário para publicar o seu próprio jogo e teve de contar com a Sierra, mas pouco tempo depois pôde comprar os direitos do título.

Se não fosse por esse crescimento comercial da Valve, dificilmente a plataforma viria a existir. E não necessariamente só por questões financeiras, mas por “falta de motivos”, visto que a plataforma foi inicialmente criada para implementar atualizações automáticas, medidas anti-cheat e mecânicas anti-pirataria mais rígidas aos jogos da desenvolvedora.

Podemos dizer que a Steam percorreu um grande caminho até a atualidade.

Eventualmente, a plataforma contribuiu ainda mais para que modificações da comunidade se tornassem mais populares e acessíveis, através da Steam Workshop e da listagem de modificações gratuitas na própria loja. Isso sem falar da disponibilização de ferramentas de desenvolvimento da subdivisão “Ferramentas” dentro da seção Biblioteca.

Além disso, o uso e desenvolvimento da Steam Workshop acabou resultando na evolução do cenário de modding como um todo, visto que a popularização do cenário implicou em mais usuários, mais desenvolvedores e uma agitação geral. Se fôssemos falar da importância da Steam para o amadurecer de diversos aspectos do mercado de videogames, passaríamos dias apresentando estatísticas e discutindo recordes.

Consolidando projetos

Eventualmente, os jogos foram portados da GoldSrc para a Source Engine, possibilitando inúmeras melhorias gráficas e várias outras evoluções, mas não acabaria por aí. A atenção dos desenvolvedores da Valve às modificações continuaram com o lançamento de Half-Life 2 e até mesmo se intensificaram.

Enquanto Garry’s Mod atuava como uma simplificação ainda maior da liberdade de criação Source, Portal, Left 4 Dead e Alien Swarm se tratavam de um novo patamar de qualidade ao qual as modificações podiam chegar. Em alguns casos, a Valve não se conteve e adquiriu os direitos comerciais dos jogos, sendo estes por exemplo Portal, Left 4 Dead e Team Fortress (originando Team Fortress 2).

Portal e Left 4 Dead, além de terem então sido lançados separadamente de Half-Life, ganharam seus próprios sucessores, Portal 2 e Left 4 Dead 2. Ambos com qualificações extremamente positivas na Steam e jogabilidade acompanhada de gráficos que continuam a impressionar nos dias de hoje. Vale considerar que, no caso de Portal, o que era somente um mod se tornou parte do universo-enredo de Half-Life, conforme aspectos fortemente expõem em Portal 2.

E o potencial da Source Engine também levaria a negócios com desenvolvedores de mods de outros jogos. Dota 2 foi fruto de uma negociação da Valve com IceFrog para trazer Dota (uma modificação de Warcraft III: The Frozen Throne) à Source Engine e lançá-lo como um jogo avulso. Atualmente, o campeonato internacional de Dota 2 (The International) é um dos eventos de eSports mais grandiosos de todos. Isso sem falar de franquias que nasceram da modificação da Source Engine, como Titanfall.

Fome por informação

Assim como a franquia Pokémon conta com Serebii.net e a franquia The Legend of Zelda conta com Zelda Dungeon, fãs do universo Half-Life e suas modificações (e títulos Source em geral) também criaram comunidades para abrigar grandes quantias de informações dos mais diversos tipos.

Enquanto sites como LambdaGeneration, Planet Half-Life e HalfLife2.net (hoje ValveTime.net) ficavam responsáveis pela disseminação de notícias, o Leakfree reunia informações sobre o desenvolvimento em Source engine, o SourceRuns expunha speedruns de jogos GoldSrc/Source e a Combine Overwiki documentava tudo relacionado a Half-Life. Nem todos eles continuam ativos atualmente, mas boa parte permanece ao menos disponível para acesso.

Abrangendo de conteúdo removido durante o desenvolvimento até conteúdo criado por fãs, a Combine Overwiki é resultado do empenho intenso da comunidade de Half-Life.

Dos jogos e textos aos vídeos e quadrinhos

Mas a comunidade não alimenta o cenário fan made da franquia somente com jogos e textos. Através de financiamento coletivo (e as vezes engajamento próprio), pequenos filmes e pequenas séries como Half-Life: Escape from City 17, Half-Life: Foxtrot Uniform e The Freeman Chronicles foram disponibilizados no YouTube.

E é claro, o YouTube também seria tomado por memes e vídeos de comédia envolvendo a série, na maioria das vezes tirando proveito de expressões faciais e movimentações ridículas possibilitadas pela Source. São centenas de vídeos no estilo, mas alguns deles ainda assim acabam por se destacar.

A webcomic Half-Life: A Place in the West, por sua vez, apresenta ilustrações feitos à mão e um enredo mais sério, acompanhado de sua própria trilha sonora e respeitando a ambientação do universo da série. Personagens dos jogos oficiais da série são mencionados ao longo do enredo.

Vale destacar que o desenvolvimento da Source Engine deu origem também ao Source Filmmaker, onde várias animações (até mesmo de jogos não relacionados à Source) de grande dedicação foram desenvolvidas. Eventualmente, o software passou a ser usado até para a criação de animações pornográficas.

Um futuro obscuro

Mesmo apesar de significar tanto para o mercado, o tema Half-Life se torna lar de incertezas e mistérios cada vez mais. Ao longo do tempo, Gabe Newell passou a falar cada vez menos de Half-Life 2: Episode 3 (especialmente de agosto de 2008 em diante) e deixou muitas perguntas: quais eram as inovações de gameplay ainda maiores do que a Portal Gun da franquia Portal das quais ele falava? Por que Half-Life 3 está demorando tanto? Na verdade, Half-Life 3 ainda seria ao menos possível depois da saída de tantos desenvolvedores originais da Valve?

A impressão é de que hoje, a resposta para qualquer uma dessas perguntas seria: “I have nothing to say about Half-Life” (“Eu não tenho nada para falar sobre Half-Life”).

A franquia continua a receber conteúdo da comunidade e modificações até os dias de hoje, mas todos gostariam de um fechamento ao enredo. Quanto mais tempo passa, mais desenvolvedores do time original da franquia deixam a Valve e um novo Half-Life parece estar ainda mais distante.

Em agosto do ano passado, Marc Laidlaw, roteirista da série (que já não trabalha mais na Valve), publicou em seu blog um texto entitulado “Epistle 3” (Epístola 3), utilizando codinomes para se referir a personagens da franquia Half-Life. Em formato de carta, o texto supostamente conta a história que deveria ser contada em Half-Life 2: Episode 3. Inevitavelmente, o texto chamou a atenção da comunidade.

Mas querendo ou não, o texto de Marc Laidlaw não tem qualquer tipo de confirmação de pertencimento à série e possivelmente nunca terá por motivos de sigilo empresarial (NDA). Por agora, o mistério de Half-Life 2: Episode 3 continua e os mais recentes (ou ao menos notáveis) engajamentos da comunidade são Black Mesa (remake de Half-Life em desenvolvimento desde 2012) e Project Borealis, projeto promissor de cerca de 70 fãs da franquia em desenvolvimento na Unreal Engine 4 que promete criar um novo jogo da franquia baseado no texto Epistle 3 de Marc Laidlaw.

O cuidado dos desenvolvedores em criar uma experiência digna à série é admirável.

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Rafael Smeers
Aventurine Brasil

Organic Marketing, Neuromarketing & Game Journalism/Localization | MTB 309683