Racismo linguístico: vai muito além do léxico que você usa

Cecilia Farias
BabelPodcast

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Apontamentos sobre o livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo, de Gabriel Nascimento.

A citação inicial já dá o tom de como ele se aproxima da língua portuguesa:

Eu não falo aqui a minha língua.

Eu falo a língua que me deram.

Mas essa língua é minha agora

Da forma que eu sei falar.

O prefácio foi escrito pelo professor Lynn Mario, o que já é bem significativo porque ele próprio veio de um ambiente plurilíngue e vivenciou uma realidade de identidade heterogênea. O Lynn Mario traz uma metáfora criada por María Lugones, nome de destaque no feminismo descolonial: o coalho. No processo de coalhar, o leite se decompõe em sólidos e líquidos; mas, para ser coalho, ele precisa ser ambos. Para ela, todo sujeito é heterogêneo, e portanto é execrável quando alguém rejeita ou despreza a diversidade no Outro.

Não é um livro sobre palavras e expressões de origem racista. A análise lexical inclusive é a parte mais superficial, e é um perigo acharmos que os debates se resumem a ela. Gabriel comenta alguns termos sim, mas esses comentários são acessórios para o tema principal: a invenção da ideia de raça pelos brancos/europeus, e a consequente racialização do resto do mundo.

Raça não é uma categoria biológica, isso quer dizer que não se pode dividir a humanidade desse modo por mera observação científica. É antes uma criação social e com objetivos políticos (colonialistas). A própria palavra negro só é usada com o sentido de categoria racial a partir da Era Moderna/Iluminismo na língua francesa.

Na Era Moderna, que vem desde o século 17, os filósofos e cientistas europeus foram criando ou buscando um ideal de ser humano, de racionalidade, bem como ideais estéticos e morais. E, enquanto ideais, deveriam ser almejados.

Mas esse ideal era baseado em parâmetros europeus: a aparência deles, a lógica e filosofia deles, a concepção de mundo deles (e suas religiões monoteístas), e isso inclui a língua deles — ideais linguísticos foram criados com base nas línguas indo-europeias. E tudo que se distanciasse desses ideais era menos humano, eram deturpações.

O Gabriel mostra no livro como a divisão hierárquica que os brancos criaram do mundo é feita por meio da linguagem, no discurso. Ele confronta a Análise do Discurso (francesa) e o pensamento pós-moderno, pois para esse pessoal tudo é discurso, o mundo é a narrativa que se faz dele. E, nos mostrando que não dá pra se apoiar só em materialidade ou só em narrativa, ele diz: “Entendo discurso como o lugar onde o mundo se cria e recria, mas reconheço que há um mundo físico, histórico e social antes do discurso em si” (p. 86).

Então o autor fala de epistemicídio e, dentro dele, o linguicídio. Extermínio do pensamento de um povo, é o pai das línguas ocidentais. “É o epistemicídio (a partir do continente europeu) que decide que as línguas dos brancos são línguas nacionais enquanto as demais não são sequer línguas e são apenas dialetos.” Ou seja, são as línguas dos brancos que merecem o status de línguas nacionais.

Um ponto que acho muito legal é que ele põe pra conversar muita gente importante nos estudos descoloniais. Há um capítulo dedicado a conectar os pensamentos de Frantz Fanon, Achille Mbembe e Lélia Gonzalez.

Frantz Fanon, pensador da Martinica, autor de Pele negra, máscaras brancas, fala da colonialidade por meio da língua, e de como aproximar seu modo de falar ao modo do colonizador é uma estratégia de embranquecimento (sem julgamento de valor, visto que muitas vezes isso é a única forma de manter-se vivo). Fanon aponta como a educação formal e o normativismo podem ser ferramentas racistas.

Achille Mbembe, camaronês autor de A crítica da razão negra, é quem mostra que o signo negro, como categoria racial, é uma criação da Modernidade, uma criação do Ocidente para racializar determinados grupos como justificativa para dominá-los. Ele também fala que não existe “o negro”, e que o uso desse termo apaga as diversas realidades em África. “O sistema perverso de colonialidade, que produziu no Ocidente séculos de escravidão negreira e dizimação dos povos originários de cada lugar onde se colonizava, não se deu fora, mas dentro dos sistemas linguísticos. A capacidade da língua permite ao sujeito muito mais do que representar o mundo, […] se trata também de agir sobre o mundo e permitir que os sujeitos ajam sobre o mundo através dos seus falares.”

Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, nos fornece o conceito de pretoguês e povo amefricano. Mais do que uma categoria geográfica, que situa a América Latina, a amefricanidade é também uma categoria linguística. Um português afrobrasileiro, “o pretoguês nada mais é que a marca de africanização do português falado no Brasil” (influência que vai muito além do léxico, permeando a sintaxe, morfologia e fonologia também). “Os preconceitos que o português brasileiro sofre das elites brancas, dos programas de ensinar português na TV, do assessoramento dos jornais impressos é de fato uma via do preconceito racial no país, em seu caráter linguístico.”

Por fim, outros dois pontos que acho importantes:

O livro vai mostrando como o sistema de ensino e o normativismo linguístico são ferramentas que perpetuam o racismo, e que isso vai de certas formas de falar até a escolha de quais línguas serão ensinadas como língua estrangeira.

Vemos que foi o humano branco que criou a ideia de raça, racializou tudo que não é branco, e agora lava as mãos para o tema. Gabriel dá caminhos para mudar isso: é preciso racializar a branquitude, e tratar a língua dos setores mais letrados como um traço de branquitude é um dos caminhos para isso. “Racializar não é racismo reverso, é uma forma de alertar sempre ao sujeito branco que ele não é universal.”

Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo, de Gabriel Nascimento. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.

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Cecilia Farias
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Investigações linguísticas, políticas e cognitivas. Estudar com música. Fazer podcasts (Punho e Babel). Divulgar ciência e revolução.