A geração que foi aprisionada pela própria liberdade
Arte by Sako Asko (instagram.com/sakoasko)
Você troca sua segurança pela sua liberdade? Esse foi o tapa na cara que eu recebi durante o Festival Path.
Tudo começou com vários insights de palestras que abordavam as diversas faces da tecnologia atual, mostrando como ela está nos libertando de padrões antigos e abrindo espaço para pequenas revoluções. Revoluções no empreendedorismo, no ativismo, na saúde, na educação. Mas e quando essas revoluções chegam nos relacionamentos humanos? Como a tecnologia tá mudando nossa forma de interagir com o outro?
Essa foi a reflexão do painel “A água turva das relações líquidas: a solidão dos hiperconectados” com a incrível Maria Homem. Ele se iniciou com a análise de uma conversa de whatsapp de um casal millenial que tinha um relacionamento sem rótulos, sem obrigações e sem monogamia… mas também sem responsabilidades e expectativas. Uma relação BETA. Um não-relacionamento incrível que permitiu que ambos ficassem com quem quiser e não tivessem que dar satisfações a ninguém, afinal eles não tinham oficialmente nada. Ao mesmo tempo, um não-relacionamento horrível que permitiu que os dois parassem de se falar, do dia pra noite, afinal eles não tinham oficialmente nada. E aí? Será que o que nosso medo de nos ancorar tá fazendo nosso barco estar cada vez mais sem rumo?
A tecnologia fez com que a gente mudasse nossas lógicas de consumo; com tanta facilidade, hoje a gente preza muito mais pelo acesso do que a posse. Ninguém precisa mais ter um carro, pois com um app você arranja um em 2 minutos; Ninguém precisa mais de CDs porque agora podemos ouvir qualquer música do mundo por streaming; Ninguém precisa mais de DVDs porque agora dentro da SmartTV tem mil séries pra escolher. E qual o problema disso? Ter mil séries pra escolher!
A grande variedade de escolhas faz a gente ficar inseguro de decidir por alguma delas, afinal pode existir outra mais interessante bem ao lado. E por isso é tão difícil escolher que filme assistir, que álbum ouvir ou até mesmo que boy puxar um inbox. Hoje o instagram é um cardápio de pessoas interessantes que podemos interagir a qualquer momento. Com tanta facilidade pra tentar algo novo, como ter certeza que a pessoa que está ao nosso lado é realmente o melhor que poderíamos ter?
A única forma de saber é experimentar. Assim, como num rodízio, precisamos provar todas as possíveis opções em busca da melhor fatia. Como apreciar algo direito se sempre existem mil alternativas que podem ser mais gostosas ao redor? Temos assim medo de nos apegar, de colocar todas as nossas fichas em um só parceiro, ficando com ele só o tempo necessário pra entender se não merecemos algo superior. As relações assim se transformam e ficam cada vez mais abstratas. Quanto menos rótulos, mais livres somos pra experimentar algo novo e abandonar a opção antiga.
Mas o que acontece quando a gente é a opção antiga? O que fazer quando a ausência de expectativas impede a gente de criar planos a longo prazo com alguém, afinal “nunca existiu oficialmente nada entre nós”? Existe responsabilidade emocional em meio a não-relacionamentos? Como encontrar algo sólido em meio às essas relações líquidas?
Já que não existe compromisso e podemos estar sozinhos novamente no dia seguinte, precisamos provar constantemente que temos valor a cada nova selfie. Criamos então uma colagem de quem nós queríamos ser nos nossos feeds pra lembrar diariamente a todos que somos interessantes. Olhamos ansiosamente os stories pra ver se o crush tá vendo a propaganda que fazemos de nós mesmos, e ao invés de olhar pra dentro e entender o que realmente desejamos, olhamos pra fora e desejamos ser desejados pelos outros.
A liberdade tecnológica nos livrou de vários padrões antigos. Hoje ela permite que qualquer um possa criar um design ativista pra revolucionar o país através das redes; fez o conceito de saúde se transformar fazendo com que pacientes se auto-diagnostiquem através do Google; deu voz a consumidores a ponto de empresas se engajarem com suas causas pra se manterem relevantes; criou influenciadores negros que usam a internet como mídia pra denunciar a opressão que vivem. Mas a mesma liberdade que faz qualquer um criar conteúdo é a responsável pela existência de fake news, de discurso de ódio na internet e de corações inseguros por serem tão livres.
Do que adianta ter um milhão de apps pra fazer tudo mas não saber o que fazer? Do que adianta poder escolher qualquer destino sem ter qualquer direção? Com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Precisamos agora entender o que fazer com toda essa potência tecnológica que temos nas mãos. Sem uso consciente, a mesma internet que nos empodera também pode nos destruir. Por isso, festivais, palestras, debates e vídeos que discutam os caminhos dessa tecnologia são cada vez mais necessários. Só assim essa liberdade será acompanhada de sabedoria pra usá-la de forma inteligente pra melhorar nossas vidas.