Eu sou a mesma que você deixou aqui
(dramaturgia: cena curta)
Eu sou a mesma que você deixou aqui
(em cena está Esmenia, por volta de seus 57 anos. ela areia panelas. entra Candido, por volta de seus 60 anos)
Candido: Pronto, plantação finalizada. Eu disse que era só trocar a posição daquela faixa em relação ao sol. Ainda bem que me deram ouvidos senão estaríamos lá o dia inteiro e seu Manoel enchendo nosso saco, dizendo que não pagaria nem mais uma diária para ninguém. (silêncio, Esmenia segue com as panelas, sem nem ao menos olhá-lo). Coisa bonita de se ver. Pode aguardar o tempo da colheita que esse ano dará só coisa boa. O solo está fértil, tudo cresce bem nutrido, firme, rígido.
Esmenia: Menos o menino.
Candido: Que é que tem o menino?
Esmenia: Não foi por falta de recomendação. De falar. De tentar botar tento. Se ele escolheu fazer os caminhos por vias das mais tortas, a culpa é de quem? Tua é que não vão dizer que é, que nada fez, nada falou. Não moveu um músculo. Mas é pai né. Vão tudo dizer que fui eu. Que não criei, não eduquei. Vai saber onde é que ele está agora. (Candido se acomoda numa poltrona) E você nem para mandar uma carta para o seu irmão para saber se ele foi para lá. Aquietou foi aí como sempre. Olhar perdido não volta filho pra casa.
(silêncio. para a lida com as panelas e observa Candido. volta a areá-las, agora com mais força, fazendo barulhos propositais, aos quais Candido se mostra levemente incomodado).
Esmenia canta Porta aberta, de Vicente Celestino:
“Vinha por este mundo sem um teto / Dormia as noites num banco tosco de jardim / Sem ter a proteção de um afeto / Todas as portas estavam fechadas para mim”.
(Candido saca um papel do bolso e o abre. Olha-o devagar, pensativo. Volta a guardá-lo. Esmenia areia as panelas com mais força. Candido está muito incomodado com isso)
Candido: Aparecido está bem.
(Esmenia não escuta, Candido diz um bocado mais alto)
Candido: O seu filho está bem.
(Esmenia para a lida com as panelas. caminha até Candido e o encara)
Esmenia: O que você disse?
Candido: O seu filho está bem.
Esmenia: Como sabe?
(Candido tira o papel do bolso)
Candido: Aqui. Ele está na casa do tio Felix. Disse estar bem, se alimentando direito, que tem saudades de todos nós. Talvez em breve ele volte.
Esmenia: Me dê cá esse papel que nem ler você sabe. (observa atenta a carta, em silêncio. depois de um tempo volta a arear as panelas)
Candido: O que diz, afinal?
(Esmenia não escuta. Candido diz um bocado mais alto)
Candido: O que diz, afinal?
Esmenia (que para a lida com as panelas): Ele está na casa do tio Felix. Disse estar bem, se alimentando direito, que tem saudades de todos nós. Talvez em breve ele volte.
Candido: Coisa boa. Em breve ele volta.
Esmenia: Sim, logo menos ele volta.
Candido: Será no tempo da colheita.
Esmenia: É certo, no tempo da colheita eles sempre voltam.
[cena curta escrita como exercício de dramaturgia a partir de uma imagem. outubro de 2020]