Baralho de Tarô Linweave, carta VII, Le Chariot (1967)

A Carruagem

Vale
bardosbardos

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“Eis-me aqui novamente, agora que encontrei um segundo pergaminho. Este foi surrupiado do almoxarife da companhia, e já que ele tem muitos papiros e eu, poucos, é redistribuição de papiros. Ademais, terão destino melhor do que os aguardava, eu espero, e ademais não preciso muito me justificar pois assim gasto esse espaço precioso. A vida de um poeta não é fácil, ainda mais quando se é um mercenário. Ao aceitar dinheiro para compor uma sátira me tornei um poeta mercenário. Ao aceitar a promessa de um dinheiro para lutar me tornei um mercenário poeta. E a vida continua não fácil… com poucos papiros.

Até agora só fizemos caminhar, montar acampamento, cozinhar, rondas noturnas, dormir, acordar, comer nos intervalos dessas vírgulas, desmontar acampamento e seguir viagem. A vida dessas gentes é bastante monótona e às vezes desejo até um acidente ou um ataque repentino que faça o sangue jorrar, digo, ferver. Enfim, andamos muito desde que saímos de Roccaforte. O tempo tem sido bondoso conosco, com dias quentes e noites frescas e amenas. A vontade que dá é de se embriagar toda noite e dormir com uma jovem serviçal, mas a vida de mercenário é mais sobre dormir que nem pedra toda noite e se embriagar com o fedor de seus companheiros. Não menciono as cãibras e pés inchados, dores nas costas e flatulências contaminadoras, pois detalhes como esses, embora muito incomuns na literatura heroica dos cavaleiros, infelizmente se mostraram muito comuns até corriqueiros em nossas andanças. Nós somos, eu percebo, muito mais animalescos do que gostaríamos de acreditar.

Decidido o rumo por nosso luminar, rumamos para Venticera, uma cidade importante, encontro de rios e mar, entreposto comercial. O anúncio me encheu de alegria, afinal é uma cidade famosa e rica. O caminho cheio de flores me encheu de alergia, porém, então entre espirros e o eventual pontapé de um veterano, seguimos caminho. Depois de uma semana na estrada – e a após a confirmação das minhas críticas juvenis ao estilo parnasiano e sua apologia à natureza–, fomos reunidos por Gambino que nos informou sucintamente que seríamos alistados ao auxílio da nobre causa do General Albierri de la Marca (creio que se escreva assim seu nome, mas perdoai este pobre poeta).

As musas no mercado de peixe de minha terra natal me relataram tal história, que foi confirmada com fé por mulheres honestas do porto e que por sua vez tiveram sua autenticidade garantida por homens sóbrios de tavernas respeitáveis. Relato conforme ouvi, ou, ipsis litteris: o general Albierri de la Marca é um homem experiente da guerra, que iniciou sua vida na soldadesca. Vindo de família nobre, porém decadente, teve como herança suas armas e um boa sorte. Fui advertido que não se deve menosprezar o boa sorte, mas tampouco uma boa espada de ferro.

Enfim, me contaram essas pessoas que ele subiu rápido e rápido também ganhou a alcunha de soldado da fortuna, tanto era seu ardor, tal qual um açougueiro ou cirurgião, em separar pedaços das pessoas de seus corpos e assim tornar-se o herdeiro de seus bens pessoais ou, como diria um mercador que conheci, suas propriedades portáteis. Elevou-se então através da carnificina, um santo ofício em nossas terras, ao título de general e fundou sua própria companhia. Galante e implacável participou de saques e batalhas e escaramuças, dando-se bem no geral e enriquecendo sem vergonha. Mantém algo que chama a atenção: uma castidade muito firme, contrastante com sua disposição de assassina virilidade. Depois de não sei quanto tempo ou o que se passou, pois tenho o vinho a me justificar apesar da terna idade, o general se casou com Bianca, a filha do Duce de Venticera. Isso realmente o tornou um nobre de estirpe elevada e sua estrela brilhou ainda mais forte, sendo considerado não mais somente um soldado da fortuna, mas sim um general da fortuna, tamanha sua sorte no amor –considerando também que guardou sua castidade para, mesmo velho, entregá-la para uma linda jovem de 15 anos que nada entende da vida, do mundo, enfim, de nada. A sorte sorri pra ambos, supostamente…

Por isso questiono o que as Tecelãs, sempre marotas, armaram, por isso questiono a razão do General com seu poderio bélico ainda necessitar de auxílio de outras companhias mercenárias. Será que o povo de Venticera, após a morte de seu líder e sogro do general, resolveu por si próprio tomar as rédeas de suas vidas, como uma carruagem desembestada, povo e destino, rebeldes a negar a suserania do general, seus projetos e desejos, e empregar estranhas noções de república e democracia, fora de seu controle?

[momento dramático de silêncio, se este manuscrito virar uma peça]. Enfim, quem sabe não diz, quem não sabe diz qualquer coisa e é vida que segue, assim como nós, sempre sul.

Pelo caminho, ao realizarmos essas coisas de mercenários, somos alertados com um latido de ordens e um chute. Devemos nós, pessoas muito sem pelo na cara e pouca experiência na ars bellum, embrenhar-nos em mata cerrada, por onde perambulam bandoleiros, criaturas hostis e espinhos além de tudo?”

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Confira o capítulo 3 das Crônicas das Guerras Carmilitas: A Torre

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