A escama da serpente

Sacripanta
bardosbardos
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2 min readDec 28, 2017

Aquilo não lhe cabia bem; não era necessário perscrutar-lhe os olhos, ou inquirir sua alma se aquilo lhe pesava: o desconforto era nítido, refletido nos olhos, no esgar da boca, nos gestos e no corpo inteiro. Aquela peça era uma estranha, uma forasteira, era como sal no pote de açúcar, ou como um grande saco de arroz em cima de uma caixa de ovos: sentia seus ossos rangerem, e ele suava tanto que encobria-lhe os olhos.

Mas a cena não chegava a dar pena. Ninguém o obrigara a vestir aquele blazer –sim, era apenas um blazer a causa de tanto drama. Ele escolhera usá-lo, pois precisava transparecer credibilidade e segurança, na sociedade das aparências. Sapatos engraxados, calça social fina, cinto de couro (da cor do sapato), camisa de botão de uma cor sóbria e aquele blazer azul-marinho –que, a seus olhos, é preto. Só lhe falta um acessório, pensa consigo mesmo: a foice afiada, pois aquele era o manto negro da Morte. No calor infernal de Niterói, aquele traje era o emblema da barbárie de nossos tempos. Ou, alternativamente, pensava, já com a mente febril, tamanho era o peso do meio dia sem nuvens, pensava que aquela era sua cruz, e achava-se mais próximo de Cristo. E seus olhos delirantes miravam o céu, e seus braços quase se abriram para receber as bênçãos do Criador. Refreou-se, contudo, a tempo: era sua vida terrena que o chamava, que o puxava para junto do chão, podando suas asas, quer de Morte, quer de Anjo.

Após o dia de sofrimento, retirou o blazer com ardor, e esperou sentir o hálito divino voltar a soprar em seu pulmão de fumante. Em vão. A carne já fora corrompida, e o peso era o mesmo, com ou sem o infeliz blazer. Olhou para o céu, sem fôlego, em desespero, mendicante, e sentiu o peso da indiferença: fora banido do Reino dos Céus. Acabara-se a era da inocência. Vestira-se de serpente, tentando forjar, com os artifícios do Canhoto, uma aparência angelical de credibilidade, segurança e honestidade. Pulara no abismo e não percebera.

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escrito em 25.05.10

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.