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6 min readSep 27, 2019

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Carta de Tarô: A Morte

“Escrevo essas linhas entre cadáveres e à luz baixa. Completam o sombrio cenário os tristes semblantes de meus companheiros. Estamos no coração do inimigo, suposto, na cidade de Venticera. Há muito o que contar e eu sei que não será pela origem do papiro que começarei. Um rato mordeu meu dedinho mindinho, testando pra ver se eu estava vivo. Como é difícil a vida de um poeta!

Voltando então: após as mortes gloriosas de nossos inimigos bandoleiros, rumamos sempre sul ao nosso destino. Venticera apareceu magnânima e desolada aos nossos olhos, com Kether quase a tocar nossas cabeças de tão grande e brilhante. Ao fundo, uma muralha abandonada contrastado com olhares de temor dos soldados que compunham o cerco, espirais de fumaça noite adentro. Na noite em que chegamos, exaustos e empoeirados, não fomos saudados. Fomos sim medidos e pesados. Nosso pequeno tamanho, quando comparado às outras companhias mercenárias ali presentes, me fez sentir como um peixinho pequeno e apetitoso que cai em um lago não muito fundo nem muito largo, porém repleto de outros peixes grandes e vorazes e famintos. Fiquei a me perguntar se não estaria mais seguro ou confiante do outro lado da muralha. Minha dúvida apenas crescia quando acompanhei Ophelia em sua busca por seus amados. Conversamos com Pentos, um homem de sua terra e membro dos Falcões Cinzentos, que nos informou que aqueles que Ophelia procurava ficaram em Altaluna. Também nos disse que havia crescente animosidade entre as companhias mercenárias, já que ali se encontrava a Companhia Dourada, famosa por fazer de um cerco um cerco às outras companhias, retardando a ação de seus homens para mais tarde saquear os saqueadores.

Além disso, parece que meus temores ou esperanças, os quais não sei diferenciar quais são quais, se revelaram verdadeiros e os rebeldes sitiados de fato declararam república e repudiaram a mão governante de nosso contratante. Isso me remete a uma história que li de um viajante antigo. Conta ele que um grupo de jovens heróis, após destronarem um falsário e um tirano, perguntavam-se qual seria o melhor regime de governo. Aos mais puros de coração, pareceu ser a democracia, estranha palavra e mais estranho conceito, em que todos têm direito a opinião e voto. [Eu, Brancaleone, por minha parte tenho medo deste conceito, pois as pessoas falam muita merda pela boca e invertem a anatomia com a qual fomos criados neste processo, sendo o mais estranho e terrível é que se julgam corretas e assertivas as pessoas que se ligam por esse hábito anatômico nefasto]. Aos que se situavam indecisos no grupo dos heróis, parecia a oligarquia o melhor governo, onde os anciões e mais sábios constituiriam um conselho e assim poderiam julgar, mandar e governar. Havia um que, apesar de ser o mais inflamado na derrubada do tirano, guardava em seu peito, segundo a narrativa do viajante, o desejo de ser ele o Rei. E este, no momento da verdade, disse em ato o que defendia, utilizando-se do argumento lógico que os sistemas até então defendidos eram todos muito bons em suas intenções, porém falhos em sua execução, pois ambos dependiam das vontades das gentes e estas, segundo ele, seriam imprevisíveis e falhas, enquanto um bom suserano seria aquele que conseguiria dar direção e força e faria o que os outros não conseguiriam fazer.

Essas ideias todas inundaram meu ser e quase me afoguei, não fosse salvo por um virote disparado acidentalmente por um companheiro de cerco, o que me traz a questão de ser poeta e filósofo como algo extremamente perigoso, então melhor não ser nenhum dos dois. Mas ser mercenário também não tá fácil, aceito logo toda encomenda então. Acho que é este meu problema com Otello, que apesar do nome, não entende humor carmelita e me xinga de várias maneiras, incluso de racista, o que não entendo o que significa isso, mas há aí briga e intriga (imbriga?), que resulta em flechas mal acertadas ou bem acertadas vá saber só não xingue minha mãe que é mulher muito boa e tenho muito amor.

Eu soube também por fontes fidedignas, como sempre são as minhas fontes, que essa tal Companhia Dourada é liderada por um sujeito gigantesco chamado Sujismundo e que ele recebeu esse nome no batismo por comportar em seu espírito a sujeira do mundo. Ele encarna o que é de mais banal e vil na natureza humana e sua cobiça e ganância são tão avantajadas que se manifestaram em sua estatura, tamanha é que poderia encobrir uma vaca, tal qual um touro. Essa companhia participa de muitos saques e cercos e sempre tem sucesso, ao passo que outras mui competentes se tornam estranhamente incompetentes ao seu lado, o que sugere aos meus ouvidos um pouco já sabidos que há caroço nesse angu, como diria minha antiga cozinheira, quando eu tinha cozinheira embora não comesse o angu por não gostar e me perguntar a razão de haver caroço em algo tão mole quanto esse prato. Porém, entendia a mensagem subliminar e campesina escondida nessa iguaria comum aos serviçais.

Eis que saem então da grande tenda, do conselho de guerra à expectativa dos soldados, os líderes das companhias. Observa-se que estão quase todos descontentes, e qual poder garante, como um governo, a felicidade geral? Eu não sei. Gambino e Sujismundo andam lado a lado e o Olifante parece gozar de grande felicidade, pegando matreiro nosso líder pelo pescoço, a dizer coisas como se fosse pr’uma meretriz, embora com intenções mais vis. Eis que Gambino retorna, sem medo, por puro pecado, e enfrenta o mastodonte, e esfrega A Carta em seu peito rotundo (a carta, aquela exata que não li), e Sujismundo embranquece e empalidece e deixa de ser canastrão maioral e fica quieto. Passo a partir daí a nutrir respeito por Gambino, que embora canalha e bandido como qualquer líder de companhia, não é lambe-botas.

Ao que ocorre nova decepção, uma injúria aos nobres preceitos da nobre vida de nobre que levava, pois que, ao fim, seremos nós, o grupo que se distinguira, os voluntários involuntários que se incumbiriam do plano de Gambino. Se a dúvida era se a Companhia Dourada, numerosa como era, engoliria as outras, fazendo o trabalho limpo do trabalho sujo, a dúvida virou certeza após Gambino revelar a nós, meros recrutas, que a carta encontrada com o Corcunda, era uma ordem para matar os líderes dos lobos negros. Uma falta de cálculo, eu diria, mas as pessoas dessa região, além de uma tendência muito grande à infidelidade, o que resulta de no fim ninguém saber quem é de fato filho de quem, são muito mesquinhas ou até misere, usando um termo de uma terra mais distante, pois querem ter o máximo de lucro com mínimo de investimento. Ora, Gambino não é qualquer um para morrer tão fácil, mas nós, recrutas, somos e por isso o Encapuzado nos seguirá, garantia macabra que, de um jeito ou outro, lá vamos nós, ventando em Venticera, testando nossa sorte.

Percebo que, quando se é inocente, o outro tem a vantagem no pecado. E assim foi conosco, em que estávamos todos muito pensativos filosóficos, na verdade sem entender coisa alguma mas alguma coisa sim não muito boa, e logo depois transportados como de uma bebedeira misturada com ser de sexo indiscernível para uma pocilga em outra cidade num leito de morte. Na beira da muralha, mas já dentro da cidade, deitávamos esplêndidos com soldados de Venticera mortos e nós desejando suas roupas, já que eles nada desejavam. Seguimos correndo, com roupas que não nos cabiam, manchas de sangue e cheiro de defunto. Um disfarce ideal para nossa empreitada secreta — tão secreta que não sabíamos ao certo qual era, mas já havíamos cumprido metade dela: entrar vivos em Venticera; faltava chegar (também vivos) ao grande templo de Ezra.

Novamente meus companheiros cederam à sua sede narcísica e caritária, o que quase nos custou sermos descobertos, o que é triste. Ser bom chama a atenção e esta é quase sempre ruim, melhor ser temido e que as pessoas mantenham distância e temor do que isso de beijinho em bebê, me dá comida, me dá dinheiro, quer algo mais, deus me livre, te solto uma magia, demônio.

Falando nestes, que se traficam de humanos, fomos emboscados por um grupo que garantiu sua morte em sua arrogância, tomando nossa falta de traquejo, a minha inclusa, como fraqueza. Matamos todos com nossas habilidades e ajuda d’o Encapuzado, que nos segue e protege, e agora estamos sentados sozinhos, nós e os mortos, a esperar cair o véu da noite e seguir a vida…de mercenário infiltrado.

A luz se esvai e penso no povo sitiado que meus amigos alimentam, dão-lhes palavras mentirosas de esperança, descansam entre seus mortos, contam seus metais, arrastam corpos para dentro de casas inabitadas e pelo fio da espada levam suas almas. Em missão secreta em Venticera, tenho meus companheiros, um protetor, pergaminho roubado e minhas palavras. E carregamos a Morte conosco”.

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