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bardosbardos
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4 min readSep 9, 2019

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Trecho das “Crônicas das Guerras Carmilitas”, nome dado por Brancaleone a um punhado de anotações, rabiscos e manuscritos que carrega consigo.

Imagem: A roda da fortuna (Herrade de Landsberg, Hortus deliciarum, ad 144 a)

A Roda da Fortuna

“Eis-me aqui, senhores e senhoras, entre homens e mulheres de expressão sombria, sorriso vil e mãos violentas. Tomo parte na sorte deles, em que a morte é seu negócio e a ruína, seu afazer. Vivem cada dia como o último e tratam isso como troféu, a morte sempre próxima como distinção. Tal destino, mesmo que para todos, o carregam com orgulho. E agora sou um deles, e com orgulho também –pois nada mais me resta.

Um pouco de drama não faz mal, não é mesmo? É necessário contar uma história para além do sangue que corre e dos excrementos que deixamos para trás. São pessoas, olhares e gritos que guardo em minha memória. Para além do fio da espada, a arma mais feroz é a verdade. Contra ela somos, no final, indefesos.

Olho para Ophelia, esta mulher que me dá calafrios. Se fosse eu como um poeta famoso que desceu para o inferno, teria colocado esta criatura como a heroína de meus contos. Sua dor alimenta sua determinação, apenas traída pelo bater de asas repentino de um pássaro, que surge como a cruel dúvida ou certeza de que sua busca pelos seus amados será vã.

Foi também ela que segurou minha mão trêmula há algumas noites. Fugia de rufiões pagos pelo nobre ***********, zangado que estava com a pequena sátira que compus a pedido do nobre ********. Que palavras pudessem ser tão mordazes eu já sabia, mas não que poderiam querer me morder de volta, isto sim uma lição. A vida de poeta não é fácil.

Entramos assim na companhia dos Lobos Negros, liderada por Gambino, um homem de tez escura e a alma mais ainda. Somos tratados como algo entre cães e o gado: cães por terem o hábito curioso de associarem suas palavras a chutes que por vezes nos alcançam e por falarem como por latidos; e gado por esperarem com afinco que possamos morrer para garantir sua sobrevivência e enriquecimento. Penso se existe quiçá um animal mitológico, meio cão meio gado, que resuma em si a vida de um mercenário recruta. Talvez um híbrido dos dois com uma mula, já que andamos sem parar e carregando potes, cobertas e armas…

A companhia é um arremedo de figuras grotescas, bizarras, curiosas e engraçadas. Nenhuma delas, porém, se apresenta como confiável. Cada um tem sua história e seu lugar na roda da fortuna. Nós, recrutas, parecemos nos unir por compartilhar o desprezo comum que os veteranos nutrem por nós, mas já percebo alguns usando de abjeto servilismo para tentar alçar favores com os superiores. Cada um luta com as armas que tem, afinal.

Vou descrever os mais próximos, para que quem leia essas páginas no futuro saiba a qualidade das personas que me rodeiam:

Caelus é seu nome, e percebo que talvez compartilhemos uma mesma origem de classe, pois é um homem comedido, educado e que escolhe bem suas palavras. Veste a gentileza como uma segunda pele –o que me faz desconfiar de uma inteligência. E toda a inteligência é má, pois duvida do que é e anseia pelo que pode ser.

Há outro que parece ser nosso par, porém de maneira peculiar. Falo de Otello, a quem não sei ser esse seu nome de verdade. Compartilha com nosso líder a tez escura, mas a alma já difere. Relata ser de distante origem e a tudo atribui um sentido do destino. Não sei se de seu povo a característica comum é aparentar ser mais moço do que é e se sou seu mais velho também não sei. Mostra-se como alguém com modos bélicos, e arcanos também são seus modos, embora me tragam a dúvida se são as tradições mágicas universais e diferem apenas nos nomes dados ou se cada pátria tem suas próprias tradições. Enfim, situa-se o berbe entre impetuoso e prepotente, corajoso e vaidoso, e talvez sejam as virtudes apenas as formas que os defeitos assumem em determinados momentos.

Tal possibilidade encontraria, contudo, um impasse na figura de Enzo, que assim como o nome, que é um atestado à falta genuína de criatividade e gosto de pais e mães ao longo de toda nossa região, mostra-se um sujeito sem sal, sem açúcar, sem pimenta, sem gosto. Uma figura com traços tão comuns que ultrapassa o estereótipo e se fosse por golpe de magia transformado em uma cidade confundiria todos seus habitantes, que se perderiam ao tentar encontrar o caminho de casa. De todos com quem conversei, me parece o mais misterioso. Penso se não é um grande ator ou pantomineiro.

O próximo desta lista é Giuseppe. O que posso dizer é que quando come cebola, seu hálito fica muito forte, capaz inclusive de espantar os mosquitos que infestam essa região nessa época do ano… (final da folha escrito em letras miúdas).

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Confira o capítulo 2 das Crônicas das Guerras Camilitas: A Carruagem

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