Carta de Tarô do Baralho de Marselha, A Torre (segundo o pinterest)

A Torre

Vale
bardosbardos
4 min readSep 9, 2019

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“Eis-me aqui? Esta interrogação vive a me perseguir, maldita. Estava no último manuscrito, agora está neste. Ao que percebi, o almoxarife reutiliza os manuscritos velhos, assim como este bastante roubado que foi, para jogar gioco di tris, que, traduzindo do dialeto ridículo deles de Concechi, significa jogo da velha, o que fazem dois velhos viciados sempre que podem em sua jogatina. Agora andam por aí procurando o manuscrito e já desconfiam de mim, pobre nobre diabo, sob ameaça de sofrer danos materiais perseguindo a elevada carreira das letras. Não é fácil ser poeta.

Voltando então a saga, partem melindrosos com receio nossos heróis rumo ao bosque, desviando-se das bostas dos cavalos que se mostram mui espalhadas pela cercania. Andamos meio a ermo, meio a perdidos, porém com a disciplina adquirida nessas quase duas semanas andando sem parar, e resolvemos por tática nos separar. Qualquer comunicação verbal revela-se desnecessária, cada um pulando de pedra em pedra e se escondendo de tal modo que um não veja o outro e é isto de fato que confunde nossos assaltantes –ou talvez um glaucoma coletivo–, pois têm muita dificuldade em acertar os projeteis desavisados que lançam contra nós, também chamados de flechas por muitos. Os mais avançados de nosso grupo se engalfinham em feroz e imprecisa peleja com os agressores, tendo nosso valor provado nos danos causados aos inimigos. Estes tombam moribundos ou fogem em covardia. Todavia, o líder, uma figura corcunda e deformada, provavelmente o filho de uma cigana com um bode preto em noite de lua cheia, é praticamente destrinchado por nosso grupo, seguindo assim o provável destino de seu pai quadrúpede.

Um pouco além descobrimos uma pequena casa, uma fazenda, onde um vislumbre da vilania dos bandoleiros nos é ofertada. A família encontra-se assassinada, com sinais de selvageria e ruindade. Os perpretantes (existe essa palavra?) de tal ato que me faz inclusive incorrer numa temeridade gramatical, são criaturas horrendas e me pergunto se enfim são mercenários também, já que me passa na mente enquanto escrevo que mercenários e assassinos e poetas satiristas pagos todos por dinheiro não são tão diferentes assim. Encontramos também indícios de que o pai morto, líder da família, foi ele também outrora um mercenário, já que possuía parcas riquezas, além de arma e armadura, e cicatrizes por seu corpo morto.

Resolvemos voltar e reportar aos nossos veteranos o que se sucedera, buscando orientação e também uma redução nos pontapés, tendo sido enfim testados em batalha. Ao chegar ao acampamento busco fazer um momento marcante, revelando que o escudo do pai morto trajava um símbolo de três lobos, em muito similar ao nosso símbolo. Aprendi que mercenários não ligam muito pra drama e alguns entre eles se mostram hábeis mentirosos. Poderia citar um, contudo, que não sabe mentir tão bem pois parece ter um coração bom demais. Falo de Monaco, que traz provavelmente o nome da cidade de onde veio, um vilarejo à beira-mar muito esquisito. Contaram-me em uma feita que uma vez por ano as pessoas dessa região fazem um trajeto em torno da cidade e é promovida uma corrida e quem ganha a corrida ganha também um ramo de ervas no pescoço e um vinho branco barato.

Ah, esqueci de mencionar que trouxemos um refém, um membro dos bandoleiros que conseguimos submeter aos nossos ditames. Enfim, esse refém revelou que havia um acampamento onde os bandidos juntavam seu saque –e isto mui interessou aos nossos nobres líderes, ávidos que estavam em reempossar esses bens novamente em mãos honestas. Ávidos também estavam meus companheiros em demonstrar sua honestidade ou sua burrice. Fica a cargo do leitor dessas parcas linhas decidir qual é qual. A final e ao final, deram toda a riqueza e uma carta, veja bem, leitor, uma carta que encontraram no corpo do Corcunda, deram para Gambino, sem que antes passasse pelos também ávidos olhos deste poeta que vos fala (interessante o recurso de se dirigir diretamente ao leitor, pensar nisso como estilo, lembrar).

Fiquei então com “cara de tacho” como dizem na minha terra, e tido como não confiável pelos olhares que Gambino me lançou. Traído me vi então por esses companheiros de solavancos e chutes, mais afoitos em agradar um sujeito que raramente nos dirige o olhar do que eu, poeta que declama versos ao final da noite para embalar o sono. Trataram ainda disso como pouca coisa e é vida que segue.

Fomos então incumbidos de retornar com força considerável, pois teríamos reforços de veteranos e recrutas, inclusive aquele Monaco da cidade de Mônaco. Ficamos mais tranquilos, pois ele parece muito ruim e tem uma espada maior do que ele. Ao nos aproximarmos do ponto designado pelos últimos suspiros do refém, que morreu por causas naturais de arrependimento, talvez, os veteranos resolveram sabiamente ficar de tocaia, no encalço e preparo então dos bandoleiros fujões, tão conhecedores eram estes daqueles em sua natureza e predisposições.

Sortilégios, truques e manhas foram empregados contra o acampamento dos bandidos, de tal sorte que esses batessem cabeça e batessem em retirada porém alguns bateram em ofensiva e a porrada cantou como dizia meu cavalariço em tempos idos quando tinha cavalariço. Pessoas perderam pé, braço, cabeça, até a vida perderam, mas no fim ganhamos. Parece ser essa a vida de mercenário, ganhar toda vez pra não perder uma última e única vez, agora eu vejo. Eu vi também uma flauta de osso em meio ao espólio, achei bonita e lembrei de uma história de um encantador que tocava uma flauta. Mas deixo essa façanha pra outro momento, pois está acabando o manuscrito e quero deixar espaço pra assinar.

BRANCALEONE

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Confira o capítulo 4 das Crônicas das Guerras Carmilitas: A Morte

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