As histórias precisam parar de promover a tortura [tradução]

Sacripanta
bardosbardos
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4 min readApr 22, 2021

Este artigo foi originalmente publicado em inglês no portal Mythcreants, em 01.07.19, por Oren Ashkenazi, e foi dividido em duas partes na publicação neste blogue.

Revelação divina: tão precisa quanto a tortura.

A tortura é uma mácula horrenda na alma da humanidade e, para ser honesto: eu não esperava ter que escrever sobre isso num portal de contação de histórias. Eu assumi que todos assistiram ao programa de John Oliver sobre tortura há cinco anos e entenderam a mensagem, mas aparentemente não, pois não fico mais do que uns poucos dias sem topar com mais uma história que apresenta visões distorcidas que sustentam a tortura. E isso não é monopólio de histórias ruins, apenas. Autores progressistas como John Scalzi e Tomi Adeyemi também o fazem — justamente o tipo de escritores que imaginei que não fosse cair nessa.

Se até a vanguarda socialmente consciente da ficção especulativa [“spec fic”, no original] vangloria a tortura, então é necessário falar sobre isso. Vamos ver se consigo explicar por que tantas histórias entendem a tortura de forma errônea e por que precisamos nos esforçar mais para mudar isso.

Como as histórias apresentam a tortura de forma equivocada

Na maioria das histórias, a tortura é retratada como um embate entre a perícia do torturador e a força de vontade da vítima. O torturador causa dor física ou psicológica necessária até a vítima enfim ceder, contando tudo o que sabe. A cena se conclui e o enredo continua. A história pode ou não incorporar o trauma causado por esse momento.

Na vida real, a tortura não é em nada parecida com o embate retratado entre vítima e torturador, porque a maioria das pessoas diria qualquer coisa que as faça parar de sentir dor, seja contando a verdade, mentindo deliberadamente ou dizendo qualquer coisa que elas julguem ser o que o torturador quer ouvir. Como o torturador não tem como saber se o que a vítima diz é verídico, ele nunca pode acreditar em nada do que a vítima diz.

Então, em vez de existir um momento em que o torturador magicamente sabe que sua vítima está dizendo a verdade, o sofrimento persiste, até algum desfecho arbitrário — geralmente quando suas suposições iniciais são confirmadas. “Oh, que surpresa, de fato todas as pessoas de quem desconfiei estão envolvidas na trama. Que conveniente!”

Na ficção, esse desenrolar é especialmente recorrente quando a vítima não tem as respostas para as questões do torturador, algo que ocorre com uma sinistra frequência. Nessas histórias, a vítima tenta manter silêncio no início, até confessar que não possui as informações desejadas. Sabe-se lá como, o torturador percebe que ela diz a verdade e para de torturá-las -ainda que esse tipo de confissão seja exatamente o que diria alguém que tem algo a esconder!

Na realidade, quando se investiga informações obtidas por meio de tortura, elas quase sempre implicam em desperdício de recursos, falsos direcionamentos ou à comprovação da inocência da vítima. Claro, é teoricamente possível que a vítima diga a verdade e o torturador acredite. Mas também é teoricamente possível abater um sequestrador atirando de maneira selvagem em meio a uma multidão de civis, mas qualquer personagem que o faça será ridiculamente incompetente.

Tudo isso está incrivelmente bem documentado, em especial nesse relatório do Comitê de Inteligência do Senado Estadunidense. Mas você nem mesmo precisa de fontes contemporâneas para chegar a essas conclusões! Uma pesquisa casual no Google levou a este relato de um duque do século XVII, que percebeu que as pessoas dizem qualquer tipo de coisa sob tortura. Se um duque no século XVII consegue sacar isso, seus personagens também podem.

Como esses mitos promovem a tortura

Primeiramente, é necessário admitir que mesmo se a tortura funcionasse da forma como funciona na ficção, ainda assim ela seria errada. Infligir dor a um ser humano à sua mercê é abominável, independentemente do tipo de benefício que possa gerar.

Entretanto, ainda que a tortura não funcione desse jeito, muitas pessoas assim o pensam, o que perverte a argumentação sobre seu uso. Para muitos, o debate em torno da tortura não é sobre se deveríamos causar a outros dores pavorosas de forma gratuita; antes, eles veem como um debate sobre se o sofrimento infligido é compensado pelas vidas salvas ao evitar ataques terroristas e afins.

Toda história que retrata a tortura como um método confiável de extrair informações reforça essa crença equivocada, acabando assim por promover a tortura -quer esse seja o objetivo do autor ou não. Toda vez que um anti-herói obstinado esmurra um suspeito até tirar dele informação, e toda vez que um vilão malvado esfrangalha um coadjuvante até que ele revele o que sabe, essas atitudes confirmam o viés de que a tortura funciona e deve ser considerada uma solução possível.

Caso sejam necessários mais argumentos, imagine se existisse uma crença difundida de que o aquecimento global só ocorresse em países que não os Estados Unidos [e até onde sei, essa crença pode existir; negacionistas ambientais são estranhos]. Mesmo se isso fosse verdade, ainda assim seria essencial parar o aquecimento global. Isso não é verdade, mas se uma penca de pessoas acreditasse nisso, a questão em torno do aquecimento global seria distorcida. Qualquer história que fosse construída em torno dessa crença negacionista estaria contribuindo para o problema.

Mais que reforçar uma acepção equivocada e prejudicial, histórias em que os heróis empregam a tortura também normalizam essa prática desumana. Se o personagem de que devemos gostar não vê grandes problemas em eletrocutar o refém até que ele fale, quão errado isso deve realmente ser? Eu gostaria de dizer que esse fenômeno é raro, mas não é. Seriados como Supernatural e Demolidor rotineiramente mostram o herói espancando seus cativos, sem se preocupar com as implicações.

[continua na parte 2]

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.