As histórias precisam parar de promover a tortura [tradução]

Sacripanta
bardosbardos
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5 min readApr 22, 2021

Este artigo foi originalmente publicado em inglês no portal Mythcreants, em 01.07.19, por Oren Ashkenazi, e foi dividido em duas partes na publicação neste blogue [esta é a segunda parte].

Por que os narradores recorrem à tortura

Ainda que cada história seja diferente, existem essencialmente dois motivos por que a maioria delas emprega a tortura: para desenrolar a trama ou para demonstrar quão fora dos padrões ou nefasto um personagem é. Em termos de desenvolvimento do enredo, a tortura é uma das táticas mais convenientes, pois permite que os personagens tenham acesso a várias informações rapidamente, além do apelo dramático oriundo de toda a dor que o personagem está infligindo a sua vítima indefesa.

Para fins de caracterização de personagem, algumas histórias optam por retratar um anti-herói torturando outras pessoas para demonstrar quão fora dos padrões eles é. É como se a mensagem a ser passada fosse: esse não é o tipo de protagonista que seus avós teriam, caro leitor; eles são modernos e dispostos a fazer o que quer que seja necessário, além de dormir com uma cópia d’O Príncipe na mesa de cabeceira.

É isso o que acontece em The Collapsing Empire, de John Scalzi, quando a piloto de cargueiro e fascistóide Kiva Lagos submete um cativo ao vácuo espacial para descobrir o que seus chefes estão tramando. Tem até um momento em que o cativo, após ceder, insiste que já contou tudo o que sabe, e de alguma maneira ela magicamente percebe que ele está falando a verdade.

Em outras histórias, percebemos como o vilão é malvadão porque ele tortura o herói. Adeyemi assim o faz em Children of Blood and Bone, onde temos páginas e mais páginas descrevendo os ferimentos terríveis que o rei maligno inflige à heroína, até que ela conta o que ele quer saber. Ele, decerto, imediatamente acredita nela e direciona todos os seus esforços militares com base nessa informação, porque obviamente ela não poderia estar mentindo!

Essas motivações para uso da tortura caem por terra a partir do momento em que seu público tem algum conhecimento sobre como a tortura de fato funciona, não a aceitando como método para obter informações da mesma maneira como não aceitariam um herói se levantar e lutar com plena capacidade apenas três dias após fraturar o fêmur.

O uso da tortura é ainda pior para anti-heróis como Kiva, de quem em teoria deveríamos gostar. A partir do momento em que ela começa a torturar prisioneiros, parte considerável do público leitor começa a desejar que ela morra na fogueira. E que os deuses ajudem o autor que quiser traçar um arco de redenção para um vilão que tortura!

Felizmente, Adeyemi foi mais esperto e não seguiu esse caminho, mas os criadores de Umbrella Academy, da Netflix, não foram tão sagazes. Alguns episódios após Hazel, o matador que viaja no tempo, torturar um civil qualquer até a morte, o show espera dos espectadores aprovação e simpatia para que ele viva feliz para sempre com sua namorada [Além disso, o show espera que acreditemos que um caminhoneiro qualquer tinha força de vontade para sustentar até a morte que ele não sabia de nada, em vez de dizer qualquer coisa para se livrar da dor]. De minha parte, eu espero que ela descubra o feito e o sufoque enquanto dorme.

Como os narradores podem mudar

Já vimos que alguns escritores tentam solucionar esse problema concedendo ao torturador a habilidade sobrenatural de detectar mentiras, tornando a cena um duelo contra a força de vontade da vítima. Eu não recomendo isso por dois motivos. Primeiro, os leitores não perceberão esse pequeno detalhe, de maneira que a história ainda será lida como estimulando a tortura.

Em segundo lugar, conceder ao protagonista a detecção mágica de mentiras é muito inconveniente. Você se surpreenderia com a frequência com que histórias dependem de os personagens não saberem se alguém está mentindo ou não. É por isso que, por exemplo, Deanna Troi tem a reputação de inútil. Ela alegadamente pode detectar mentiras, mas isso desfaria a maior parte dos enredos de mistério, então os autores fazem com que os poderes dela deixem de funcionar por motivos inexplicados.

Em vez desses remendos problemáticos, é necessário estabelecer qual o resultado pretendido com a tortura, e atingi-lo de outra maneira. Se o objetivo é obter informação, então os heróis podem associar pistas anteriores com algo que o prisioneiro tem em seus bolsos: “A partir das fotos de seu telefone, ele provavelmente colocou a bomba lá no porto. Que bom que não tentamos espancá-lo para descobrir isso!”

Você também pode fazer com que seus personagens empreguem técnicas interrogatórias que são comprovadamente exitosas, ainda que elas geralmente demandem tempo, pois dependem de construir a abordagem correta com o prisioneiro, oferecendo algo em troca da informação. Se isso funciona na sua história, ótimo, siga esse rumo!

Se você quer demonstrar quão obstinado seu protagonista é, ou quão mau é o vilão, a melhor opção é mostrá-los sendo capazes de agir em prol de seus interesses às custas dos outros, variando apenas o grau entre o que o anti-herói e o que o vilão estão dispostos a fazer. Um anti-herói pode iniciar uma briga no bar para encobrir sua fuga ou matar um inimigo ferido de modo a evitar uma ameaça futura. Um vilão pode incendiar uma construção para obter o valor do seguro ou subjugar um povo conquistado em busca de mão de obra barata.

Como a tortura deveria ser retratada

Se a tortura fizer parte de sua história, ela precisa ser retratada fidedignamente. Uma maneira de fazer isso é mostrando quão risivelmente imprecisas são as informações obtidas por meio da tortura. Dessa forma, sempre que alguém for torturado em uma investigação sobre bruxaria, repentinamente a região pareceria estar repleta de bruxas. Fascinante! Essa construção funciona melhor para comédias sombrias, uma vez que os vilões que acreditam nas informações obtidas sob tortura são em geral incompetentes demais para serem levados a sério.

Alternativamente, você pode mostrar que a tortura é usada, na realidade, para quebrar as pessoas. Às vezes isso obedece a um propósito, como o de obter confissão a despeito de culpa; em outros casos, ela pode apenas satisfazer os desejos perversos do torturador. Se isso soa como uma premissa bastante sombria para uma história, é porque de fato é, tanto que vai limitar o apelo da sua narrativa. É melhor ter bons motivos para incluí-la.

Como a maior parte das narrativas não possuem motivações fortes, um retrato real da tortura será um desconforto gratuito. Uma forma fácil de evitar uma narrativa apologética à tortura é simplesmente evitá-la, e eu estou contando os dias para que os escritores percebam isso. As histórias serão melhores, e vai enfraquecer o apoio à tortura na vida real.

Leia mais sobre Justiça Social em Mythcreants.

Obs.: todos os erros de tradução aqui encontrados são de responsabilidade minha, mas os acertos não seriam possíveis sem a ajuda inspirada da poetisa e geógrafa de plantão, Lara (cujo blogue vale a pena conferir).

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.