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Sacripanta
bardosbardos
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3 min readFeb 29, 2020
foto tirada pelo autor

Não existem mais cartinhas sinceras depois dos trinta anos. Nem noites insones pensando em alguém. Nem doses de uísque embaladas por um sentimento que mal começou e já se vê condenado a acabar. A fumaça do cigarro já não fica mais presa na garganta, engasgada junto de umas tantas palavras que já foram faladas mas que, ainda assim, teimam em querer sair de novo, de alguma forma.

Depois dos trinta, já não se arranha mais as folhas de papel com a tinta azul de algum sentimento que arranha o corpo em algum lugar, que escava um pouco a superfície rígida, endurecida e desconfiada da pele de só quem tem mais de trinta anos tem.

Não se fecha mais os olhos para sentir algo esvair-se aos poucos, depois que se faz trinta anos. Nem se move involuntariamente os dedos como se fosse possível pegar isso que se perde, sentindo-os mesmo roçar em alguns fios de cabelo cor de cobre, esvoaçantes, que se afastam.

A casa dos trinta não é mais morada para essas coisas, pois as noites são insones de preocupação; o álcool anestesia apenas os problemas; as palavras, como fumaça, são tragadas e esquecidas, engolidas à força. A tinta nem mesmo desliza já que não se escreve mais, e nada cavuca a superfície trincada e amargurada, pétrea, imóvel da pele. Os olhos se fecham de cansaço e os dedos ajeitam o próprio cabelo, que cisma em cair na cara.

Os trinta e tantos são uma mentira contada e recontada ao longo de dez anos, desde os inocentes vinte e suas ilusões de juventude. Até que se acredita: aí se acabam os vinte. É a condição de envelhecer.

Aos trinta tudo passa, tudo cessa. Arroubos, descobertas, recomeços: não há mais lugar para isso. O máximo que se pode escrever é uma carta piegas. Uma canção sertaneja. Um rima torta. Uma declaração tosca. Quando se tem mais de trinta anos, o que abunda é ridículo e jocoso. A sensação de falta de tempo para sentir. É permitido sorrir, mas não gargalhar; cogitar mas não fazer pois tudo é calculado e não há mais espaço para testes. Pode-se sentir menos. Contentar-se com menos. Conta-$e mais, permite-se menos. Friamente comedidos. Contidamente livres. Racionalmente emotivos. Sobriamente ébrios. Barreiras. Limites. Restrições.

Talvez eu não tenha mais de trinta.

Porque tem coisas que eu não quero deixar passar sem que me rasguem. Sem que me marquem. Sem que eu sinta.

Porque eu exorcizo os fantasmas de Pessoa: sinto o que tivemos, e sinto a dor do que não temos mais e sinto, de relance que seja, tudo o que poderia ter sido: cogito os sentimentos que antes eram insondáveis; as possibilidades que não existiam antes que eu te tocasse; os devaneios, insonháveis antes que eu te tivesse, por uma noite que tenha sido.

O que não se pode sequer sonhar, esse é o fantasma de Pessoa, e é esse fantasma que eu exorcizo nesta noite insone, ébria, arranhando o papel com a vontade que eu tenho de arranhar sua pele não com a caneta, mas com a ponta dos meus dedos ou com minha barba sempre por fazer, ou com a língua inteira, sedenta.

Os fantasmas do incogitável agora têm o seu cheiro, pelos teimosos de gatos presos em algum vestido comportado, dedos esguios e falam com um sotaque com fonemas deliciosos. Mas carregam cicatrizes que se parecem com as que foram abertas em mim.

Talvez eu tenha menos de trinta, porque as palavras não são tragadas junto da fumaça dos cigarros que fumo; antes, elas exalam dos meus dedos, nessa folha que bem poderia ser a sua pele. Talvez eu tenha menos de trinta porque não consigo calar e fale compulsivamente porque não sei se essas palavras conseguiriam sair amanhã, quando tiver que encarar, sóbrio e com mais de trinta anos, o fato de que não posso mais te ter.

Talvez eu tenha mais de trinta anos, porque só consigo dizer quando já não é mais do que fantasma.

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.