Desencontro

Sacripanta
bardosbardos
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2 min readJan 4, 2018

Uma lembrança o arranca subitamente daquela cama quente, e da mulher lânguida ao seu lado, e ele podia quase sentir o suave roçar de uma farta cabeleira ruiva em sua nuca, os dedos maliciosamente descendo entre os pelos de seu peito, em direção à barriga; o barulho de uma boca que se abre próxima ao seu ouvido, prestes a sussurrar, e o perfume delicioso, que jamais soube o que era, mas sempre o aturdia.

Uma cabeleira loura cobria-lhe a visão; a voz sussurrada tinha um sotaque estranho, e o perfume se esvaíra, deixando um cheiro indistinto, nem bom nem ruim, insosso como o gosto do beijo que recebia.

Que diabos fazia ali? Não queria mais. Não queria mais ter aceitado o convite para o bar, não queria mais ter sido agradável, sorridente e espirituoso, nem o leve tom de melancolia, nem as confissões que fizera como se segredasse mas que no fundo eram tão banais quanto pedir a próxima dose de uísque amargo -que ele detestava- enquanto destilava seus encantos para a mulher à sua frente.

Serão todas tão carentes assim?, perguntava-se Antônio, enquanto a falante loura contava alguma historieta insignificante mas importante para ela. Tudo o que Antônio precisava fazer eram caras de espanto, de contentamento, ou de pesar, dependendo do momento, e encaixar duas ou três palavras ocasionalmente (“Sério?”, “Que absurdo!”) e rir à larga, quando ela risse.

Era uma farsa, ele sabia, mas também ele era carente como ela, e por mais que aquele encontro fosse amargo como seu uísque, ele o tomava como se a esperança estivesse no fundo do copo, e prestes a surgir, algo como “talvez ela seja interessante”, ou então um mais desesperado “talvez ao menos seja boa de cama”. Mas aquele beijo insosso, que o tirava de belas lembranças, dizia que não, que era tudo uma farsa e tudo o que agora restava eram dois corpos estranhos fingindo-se à vontade, esforçando-se para que aquele contato não fosse decepcionante como os últimos.

A cena acontece com uma naturalidade forçada, pois a loura insossa e carente e ele não buscam um corpo, não buscam um gozo, eles buscam… Céus, o que eles buscam? Talvez, só o próximo copo, com uma esperança doce no fundo.

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escrito em 09.03.10

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.