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Devoção — ou três momentos de fé

Conto curto sobre crença não dogmática, em momentos distintos da vida

Sacripanta
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4 min readDec 14, 2017

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Espanha, 1967

Seus passos reverberam pela nave, num eco de outros passos posteriores. Para onde eles levam? O eco cessa, e seus olhos se erguem para os vitrais, e é dia ainda, mas os raios de sol não deixarão os antigos mosaicos incandescentes, pois lá fora chove.

Há uma poça onde deveria estar sua sombra: é que esquecer de tirar o capote, trazendo junto de si as impurezas do exterior –eis o primeiro pecado. Ainda não mirou os olhos no altar; antes, perde-se nas bordas, naquilo que marca a fronteira com o mundo de onde viera: a porta que deixou para trás, as robustas paredes laterais e, acima de tudo, os vidros –eis que os mira novamente, úmidos, claros, embaçados.

Repara que também seus olhos choram: úmidos, perplexos, embaçados. Suas mãos agora cobrem seu rosto, escondendo-o do desamparo do choro sem motivo; tristeza profunda, desespero efêmero e uma sincera piedade de si irrompem de dentro da lastimosa criatura: segundo pecado.

Outros passos ecoam, e o reflexo é procurar o refúgio de um dos bancos. Olhos cerrados, vitrais calados, o sobretudo encharcado, dedos frios sob as meias molhadas e, novamente, o gosto claro do pecado, e ergue então, como que pede misericórdia, pela primeira vez os olhos ao altar: Salva-me.

Grécia, 1982

As ruínas inspiravam-lhe solidão e melancolia. Mesmo cercado por todos os turistas que dia após dia assediam a Acrópole, sentia-se só. E não era igualmente assim em sua cidade? A multidão saindo das barcas como as ovelhas de Chaplin saem das fábricas –aonde serão seus abatedouros?-, os desconhecidos comensais no almoço, os que fazem companhia nas caminhadas matutinas, corpos sem rosto a cruzar com o seu.

Mas ali, nas ruínas daquele país distante, distinguem-se muitos rostos: frios, esburacados, cinzentos; rostos em excesso nos alto-relevos dos frisos dos templos. Um frio perpassa sua espinha enquanto os observa, então vira os olhos: não fora ali para mirá-los; não quer rostos, nem espelho. Sobe os degraus corroídos, vislumbra a estranha cidade abaixo, imagina rapidamente filósofos, lembra de alguma história com pólvora e vê o mar –não era violeta, na Grécia? Fecha os olhos e pressente a queda; pondera sobre deixar-se ir, mas a mão instintivamente se escora em uma coluna. Não tinha visto que era uma coluna, pois permanecia com os olhos cerrados, mas por anos sonhara com aquele toque frio, aquela textura áspera, aquele peso dos anos escavado na rocha crua, seus dedos ágeis desnudando a coluna antiga, cravando as unhas, arranhando a pedra, como que para libertá-la de um longo torpor. Sentia-se como uma criatura libertina, mas não o era: era aquele o seu templo, o seu tempo, enterrado sob o peso dos séculos.

Rio de Janeiro, 2006

Seus pés descalços se arrastavam lentamente sobre a pedra fria e a poeira; pousou a mão em uma mesa logo próxima à entrada, os dedos cavando a poeira acumulada, sentindo a textura do velho livro ali deixado, perto do cachimbo de madeira escura. Pegou no bolso do casaco um pouco de seu próprio fumo, e limpou e acendeu o antigo cachimbo. A fumaça demorava a desfazer-se, brincando no ar parado, adentrando nas frestas dos livros nas prateleiras. Descalço, sentia-se penitente, e a fumaça lançado no ar era o vapor do turíbulo sagrado.

Fechava os olhos em pura adoração, e se entregava à luxúria dos dedos sobre as lombadas dos livros, um a um: umas firmes, outras ásperas, as carcomidas e moles, as quebradiças, todas exalando cheiros diferentes mas com a mesma nota venerável que somente os anos trazem; apertava-as, ou então apenas as acariciava de leve, a sujeira entranhando nos sulcos de suas mãos nodosas.

Havia tanto tempo que não sentia aquela plenitude, aquela adoração silenciosa que parece prostrar. Passara tanto tempo entre livros, mas só ali, naquele momento, percebia que a fé que procurava era a solidão daqueles corredores poeirentos, de volumes gastos e folhas amareladas. Gastos e amarelados como ele próprio, e solitários também. Havia comunhão com aquelas estantes, e havia ainda, a despeito dos anos, uma corda que vibrava, compulsivamente, à procura de um acorde. Encostou os dedos nas lombadas e ouviu esse som livresco. E seu corpo todo tremeu.

Olhou enternecido para aquele amplo salão cheio de corredores: era o seu último refúgio. Ali, descalço e em meio à poeira, era ali que ele faria frutificar toda a devoção que por anos a fio não conseguira fazer viver plenamente. Seus olhos brilharam e deleitava-se em antegozo com aquelas prateleiras de papel maciço: pequenos universos a serem descobertos. Valera, então, a pena a amarga espera. Voltou, cansado, para a mesa da cabeceira, sentou-se, deu uma nova baforada no cachimbo, abriu o poeirento livro em cima da mesa e leu:

Tornais, vós, trêmulas visões, que outrora

Surgiram já à lânguida retina.

Tenta reter-vos minha musa agora?

Inda minha alma a essa ilusão se inclina?

Fechou, limpou a capa e leu o título: Fausto. Tornou a ler as páginas amareladas. Sua cabeça pende, e cai pesada, em cima da mesinha de madeira escura. Não se levantará mais, mas ao menos houvera tempo de receber sua extrema unção.

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Escrito em 19.01.10

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Sacripanta

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.