capa da edição original do livro

Dungeons & Dragons — o Império da Imaginação, de Michael Witwer — Parte 1

Sacripanta
bardosbardos

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[Nota: primeira parte do artigo levemente modificado em relação ao original publicado em A Cidadela, um blogue maravilhoso sobre RPG que, entre outras coisas muito relevantes, atualmente narra as desventuras de um ousado grupo de aventureiros em Greyhawk]

Esta não é uma resenha de uma biografia qualquer! Longe disso, ela versa sobre aquele que nos une a todos, tanto em nossas sessões semanais (seja nos 17 Mares, Ilhas Florais, Claymore ou na Península Carmilita) quanto em outras sessões menos ilustres em todos os cantos do globo: Gary Gygax. Ele mesmo, o criador do RPG tal como o jogamos, aquele que normatizou devaneios imaginativos com regras mais ou menos simples, amarrando a um jogo as duas forças que, segundo Maquiavel, moviam o mundo: a virtude e a fortuna.

Introdução

A fortuna, ou a sorte (e o azar), é um elemento inexoravelmente presente, quer devido às circunstâncias que nos escapam, quer como consequências mais ou menos inesperadas de nossas próprias ações e capacidades (a virtude). Somos atores e agentes, no mundo real e no da fantasia, e a despeito de todo engenho e de toda proeza podemos, no máximo, dobrar um pouco a fortuna a nosso favor, mas jamais eliminá-la. Daí os dados, com sua natureza imprevisível, impondo dificuldades ou vantagens em nossos intentos.

Gary Gygax posudo e não com muita cara de nerd (fonte -vale a leitura do artigo)

Gary Gygax não inventou a rolagem de dados nos jogos (longe disso), nem formas de normatizar em as forças que movem a vida (longe disso, também), mas, a partir de jogos de batalha e estratégia bastante em voga em meados do século XX, criou um sistema e um cenário especiais para que se desenvolvessem personagens únicos, dotados de habilidades heroicas, enfrentando desafios físicos e intelectuais, numa cruzada por seus ideais -ou meramente para sua sobrevivência.

Em vez de liderar exércitos em batalhas napoleônicas, Gygax desenvolveu o D&D: um sistema de jogo com foco no personagem individual, imerso em um universo de diversão, masmorras, dragões e fantasia em que, ao longo das aventuras, esse personagem aprimorava sua virtude, suas armas para viver nesse mundo. Virtude, cumpre dizer, não tem aqui (nem em Maquiavel) um aspecto moralista, e sim no sentido de capacidade de fazer valer sua vontade, seja ela benigna ou maligna, individualista ou coletivista, partidária ou apartidária, sóbria ou virulenta, ou nem um nem outro: cada um é dono do próprio nariz e faz o que lhe convém ou deliberadamente segue o que convém a terceiros.

Esses personagens não eram meros autômatos roladores de dados. Não! Eram personagens, oras, com ambições, falhas, humores, volições e características singulares e insubstituíveis por definição, tal como são os com que jogamos. Na verdade, a grande invenção de Gygax foi justamente essa, pois ele se inspirou/apropriou/evoluiu num jogo cujo nome ficou perdido nos anais da história e que não teve muita sobrevida (Braunstein), que permitia a personagens individuais exercerem determinadas ações para concluir objetivos específicos. Mas a ideia de tornar esses personagens centrais em uma aventura, e as regras para determinar suas ações, isso tudo nasceu da cabeça de Gary.

foto do jovem Dave Anerson (fonte)

E da de Dave Arneson. Nenhuma biografia sobre Gary Gygax seria completa se não citasse Dave Arneson, ainda que o livro não deixe claro o que foi criação de um e o que foi criação do outro. Naturalmente, a biografia escrita por Michael Witwer fala da relação entre os dois. Gygax era um indivíduo dotado de enorme imaginação criativa, mas bem mais velho que Arneson, e já desenvolvera/adaptara outros jogos. Gygax sabia que ideias não bastavam para fazer sucesso, sendo necessário torná-las palpáveis e compreensíveis ao público. Arneson era uma força criadora, cheia de ideias e conhecimentos, mas que não conseguia dar forma comercial a elas. Talvez percebendo isso, Gygax conseguiu estruturar o universo que criou com seu colega, criando um sistema coerente de regras. É difícil distinguir o que um e outro criou, mas Gygax contribuiu tanto para a criação do cenário quanto para sua transformação em um produto acabado e passível de ser vendido, enquanto Arneson ficou mais alheio ao trabalho braçal, burocrático e pragmático.

Para mais um pouco sobre, principalmente, a relação entre os dois, vale a leitura deste ótimo artigo lançado pouco após a morte de Gygax, e que conta com depoimentos de ambos os envolvidos. Não é uma leitura exaustiva sobre o tema, mas lança luz sobre alguns pontos interessantes do enredo.

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capa da edição brasileira do livro

Resumo não muito imparcial

Foi lançada ano passado (e portanto com menos de um ano do lançamento original) uma tradução em português da obra, pela editora Leya: Dungeons & Dragons. O Império da Imaginação: a história de Gary Gygax, o criador do RPG mais famoso do mundo, e tem, além do título longuíssimo, uma capinha bem bacana, bem parecida com a do livro do mestre de D&D, como você pode ver na imagem ao lado. Como não li essa tradução, não posso opinar sobre ela, mas o original em inglês é de fácil leitura, o autor escreve de maneira linear e clara, então imagino que não deva haver muitos problemas na versão para nossa língua pátria.

Bom, o livro nos traz informações breves mas interessantes sobre a vida juvenil de Gary, nascido em 1938 em Lago Geneva (uma cidadezinha estadunidense atualmente com 8 mil habitantes), com alguns fatos marcantes (como o porquê de ele nunca mais dirigir), e depois se debruça sobre sua vida paralela de jogador nerd e as demandas da vida adulta, os problemas conjugais derivados da sua jogatinagem incessante (sua mulher certa vez deu um perdido na casa de um amigo, achando que daria um flagra no marido, mas ele só estava de cueca tomando suco de caju e comendo chocolate, jogando jogos de tabuleiro com seus amigos), seu trabalho incessante para desenvolver e ganhar grana com seu hobby, a primeira GenCon, em Lago Geneva (organizada por um ainda não lendário Gygax em 1968), a fundação da TSR em 1973, a criação a várias mãos do cenário de Greyhawk (que começou com uma masmorra sob um castelo), os inescrupulosos sócios (necessários porque eles que tinham a bufunfa), a passada de perna violenta que levou e suas tentativas posteriores.

Foi apenas após ficar desempregado (1970) que considerou seriamente viver do seu hobby. Um ano depois, lançaria seu primeiro jogo de tabuleiro, Chainmail, sob selo da Guidon Games, que encontrou relativo sucesso. Dois anos depois, fundaria a TSR junto de seu amigo Don Kaye, já tendo conhecido Dave Arneson e com uma versão primordial do D&D, que aglutinou elementos de Chainmail e também de Blackmoor, um cenário criado por Arneson a partir das regras do jogo de Gygax (que, aliás, jogava ocasionalmente com Arneson). Em 1974, após uma série de testes, a TSR finalmente está pronta para lançar comercialmente o D&D, mas com um porém: precisavam de mais dinheiro para arcar com o custo da tiragem inicial de mil exemplares, o que só seria possível com mais um sócio, que aportaria dois mil dólares e deteria controle de 1/3 da empresa. Esse sócio seria Brian Blume, mas eu não me lembro de onde ele surgiu.

A tiragem inicial é um sucesso de vendas, mas infelizmente Don Kaye não vive o suficiente para ver isso, pois morre antes. Gygax compra a parte dele de suas ações, mas de alguma forma que não ficou clara para mim (quer por ignorância do tema, quer porque a explicação do livro foi superficial ou insuficiente), ele acaba perdendo paulatinamente, o controle majoritário da empresa para Blume e o irmão (todos devidamente patrocinados pelo pai). Já em 1975 Gary se torna o primeiro empregado integral da TSR, lançando no ano seguinte a mítica revista Dragon. Esse ano marca o desentendimento entre ele e Dave Arneson, que sai da TSR, deixando de ser contribuidor. Em 1979, ele iniciaria a longo batalha jurídica sobre direitos autorais de D&D, acusando a TSR de não pagar mais seus direitos devidos (a TSR lançou uma revisão das regras, muito mais elaborada e distante da original, chamada de Advanced Dungeons & Dragons, o famoso AD&D, mas essas diferenças acabariam se tornando nuances sem importância para os juízes).

A relação entre os sócios foi se degradando, a ponto de em 1983 Gygax se mudar para a Califórnia, para dirigir o braço de entretenimento da TSR, (providencialmente denominada TSR Entertainment Corp.), para não ter mais que lidar com os irmãos Blume na TSR Hobbies (a empresa original, responsável pelos livros de D&D, sediada em Lago Geneva). Todavia, a má gestão dos irmãos Blume faz a TSR charfundar em dívidas em 1984, obrigando Gary a voltar para descobrir que porcaria estava acontecendo com a empresa. Descobre, entre outras coisas que os irmãos Blume andavam mobiliando seus escritórios com peças de antiquários. Apesar da grande receita (US$ 22 mi, em 1982), o lucro da empresa era cada vez menos, e as tiragens dos produtos não eram bem calculadas, gerando estoque ocioso.

capa da edição original do Unearthed Arcana

Gary abandona as negociações do que poderia ter sido o primeiro filme de D&D, reassume o controle da empresa devido a alguma jogada contratual que não entendi bem, e lança Unearthed Arcana, cujas vendas resolvem os problemas financeiros da empresa. No ano seguinte, porém, sofre um contragolpe dos irmãos Blume, depois ele próprio coloca outra pessoa dentro da empresa, Lorraine Williams, que acabaria, por sua vez, por dar em Gygax o golpe de misericórdia, comprando a parte da empresa dos irmãos Blume, tornando-se sócia majoritária e deixando claro que agora a companhia seria dela. Amargurado por ver a companhia cair nãos mãos de uma “não jogadora”, Gary acabou por vender sua parte na empresa em 1986 mesmo, após uma batalha judicial para reaver a sociedade majoritária.

Com sua saída, Gygax não pode mais produzir material sobre todo o cenário que ele criou. A TSR entra em declínio, mas parece se esforçar em podar toda e qualquer tentativa de Gygax conseguir ser bem sucedido em sua carreira. Ela o processa, por exemplo, em 1992, quando ele desenvolvia um projeto pioneiro de jogo de computador, estando em negociações avançadas com grandes empresas da época. Sabendo disso, a TSR o processa. A acusação não fazia o menor sentido, mas: 1) afasta as empresas interessadas no negócio, que não queriam iniciar um projeto com um processo judicial; e 2) infernizam a vida de Gygax, que lutava sozinho contra todo o corpo de advogados e recursos da TSR para protelar o processo.

Em 1997, a Wizards of the Coast compra a TSR, e aproveita para fazer acordos sobre direitos autorais com boa parte dos autores, questão que nunca foi bem resolvida na história da empresa, que costumava atribuir a autoria dos trabalhos diretamente aos autores, e não exclusivamente à TSR. Em 2008, Gary Gygax deixa esse mundo, aos 70 anos de idade. Felizmente, foi reconhecido em vida por todas as suas contribuições para o universo.

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Leia a Segunda e última parte:

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Para esta resenha, considerou-se o ebook do original em inglês:

WITWER, Michael. Empire of Imagination: Gary Gygax and the Birth of Dungeons & Dragons; 1ªed. New York: Bloomsbury, 2015. 283 pages. E-book.

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Sacripanta
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Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.