capa da edição brasileira do livro, pela editora LeYa

Dungeons & Dragons — o Império da Imaginação, de Michael Witwer — Parte 2

Sacripanta
bardosbardos
6 min readSep 18, 2019

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[Nota: segunda parte do artigo levemente modificado em relação ao original publicado em A Cidadela, um blogue maravilhoso sobre RPG que, entre outras coisas muito relevantes, atualmente narra as desventuras de um ousado grupo de aventureiros em Greyhawk]

Algumas considerações sobre o livro

Ainda que não seja narrada dessa forma, a história de Gary Gygax é trágica. Ela conta o drama de um indivíduo inventivo pra cacete que não tinha grana nem equipe suficientes para tocar um empreendimento do porte de D&D -que foi um baita sucesso desde o início- e que acabou contando com as pessoas erradas para serem suas parceiras de negócios.

É irônico que o criador da empresa, incapaz de se dobrar em dois para conseguir tocar toda a parte criativa e ainda gerir a empresa, tenha sido escanteado por dois camaradas que só entraram com a grana mas que, por direito, podiam auferir os lucros crescentes de tudo, por mais que só fossem (maus) administradores. Gary se tornou minoritário da empresa que ele próprio criou, pelo infeliz acaso da morte de seu sócio/amigo de infância, e enquanto trabalhava pra burro criando o material que vendia, os outros dois assumiram o controle de fato da empresa, cuidando de atividades burocráticas. É realmente irônico e trágico que aqueles que assumiram as funções substituíveis (qualquer um com formação pode se tornar um burocrata gestor) fizeram valer sua vontade sobre o único dos sócios com a característica mais valiosa à empresa, a inventividade.

De certa forma, a biografia de Gygax nos mostra, primeiro, como é duro fundar uma empresa tendo uma ideia genial mas sem ter grana e, segundo, como tem gente endinheirada à espreita para te dar uma rasteira e roubar, legalmente, tudo de você e agir como se todo aquele trabalho não fosse de quem o criou e deu forma. Quando ele é tirado da TSR, não foi apenas a empresa que ele perdeu, mas a possibilidade de criar e desenvolver todo o universo por ele concebido. Ainda que não fosse possível fundar a TSR sem nenhum capital, mesmo com uma montanha de dinheiro a TSR jamais teria sido fundada. Liguem os pontos e digam qual o elo mais fraco entre criatividade e recursos, na história da TSR. O RPG não existia antes de Gary Gygax, nem o mercado consumidor desses jogos. Foi seu trabalho -criativo mas também exploratório, pois ele lançou jogos anteriormente, e arriscado, pois veio dele a iniciativa de fundar a empresa-, foi seu trabalho que, efetivamente, criou esse mercado, que não ficou restrito apenas aos nerds que curtiam jogos de estratégia.

É importante considerar também que a biografia é bastante gigaxêntrica, ou seja, completamente fundada a partir do biografado. Assim, esses episódios da sociedade na TSR talvez seja narrados de forma bastante diferente pelos irmãos Blume ou por Lorraine Williams. Ou então cortem a baboseira e leiam logo este maravilho artigo sobre o imbróglio, que resume de maneira muito melhor que o livro o período turbulento de fundação e saída de Gary Gygax da TSR, dando ótimos e bem explicados detalhes. Vale bastante a leitura, confesso ter ficado tentado a ajustar meu resumo ao contado lá, mas preferi ser fiel ao que me lembrava do livro de Witwer (afinal, esta é uma resenha desse livro).

Outro ponto interessante que o livro nos faz pensar é como o processo de criação e amadurecimento de ideias geniais demanda dedicação e tempo. Gygax não criou o D&D da noite pro dia. Ele participou durante anos de publicações voltadas ao público gamer, fazia incontáveis adaptações caseiras dos jogos que comprava, e testava e jogava loucamente com seus amigos, muitos deles com metade da sua idade. Contava suas ideias, ouvia a dos outros, promoveu praticamente sozinho encontros de jogadores dos EUA, tudo isso enquanto tinha um outro trabalho, que realmente dava sustento a sua família.

Capas de três outros trabalhos de Gygax: The Epic of Aerth (Mytus/Dangerous Journeys) (1992); Anubis Murders (2007, reimpressão de uma edição de 1992); The Canting Crew: Gygaxian Fantasy Worlds Vol. 1 (2002);

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Críticas argutas

Colhidos os louros, vamos às críticas.

Em uma palavra, essa não é a biografia definitiva de Gary Gygax. Tem muitas lacunas, em especial nas questões cruciais, como sua saída da TSR. O relato parece incompleto, sendo a falha mais grave o autor não ter procurado as outras pessoas envolvidas: a empregada Lorraine Williams, que passou a perna no Gygax, apesar de ter sido colocada na empresa como sua aliada, depoimentos dos outros sócios que durante anos brigaram com Gary pelo controle da empresa, e também Dave Arneson.

Não há ao menos uma nota dizendo que essas pessoas se recusaram a participar da biografia, o que é indesculpável, pois são personagens centrais na história. Todos os relatos se resumem a um apanhado (abrangente, é verdade) de textos e palestras do Gygax, bem como telefonemas e entrevistas por email com a famílias. Isso mesmo, telefonemas e entrevistas por email. Não há menção, por mais breve que seja, a uma entrevista presencial.

Sou super partidário das relações tecnológicas. Skype, SMS (antes do advento do whatzap), email, são todas ferramentas úteis, mas dificilmente fornecem, a um estranho, o tipo de informação necessária a uma boa biografia, pois esses meios são incapazes de gerar respostas a questões que nem o entrevistador fez. Ninguém discorre longamente em emails ou se sente à vontade para ficar horas divagando pelo telefone. Essas tecnologias favorecem uma abordagem sucinta e impessoal, o que cai muito bem a uma matéria jornalística, mas são insuficientes para aparar as arestas de uma biografia. Dá a impressão que o autor não conseguiu mergulhar nas questões da vida de Gygax, apenas ter acesso a um relato formal sobre elas.

Como consequência, a biografia não parece pessoal: ela dá a impressão de ser uma coletânea de fatos disponíveis em palestras, ou em conversas com estranhos. Faltam fatos arrancados, meias informações e entrelinhas. O livro de Michael Witner é limitado pelas próprias limitações do autor em encontrar respostas ou fazer as perguntas certas, e isso fica claro nos momentos de crise da vida de Gygax, quando temos a impressão de vagar na superfície de um mar turvo e inexplorado, incapazes de mergulhar e abrir os olhos para saber o que se esconde longe do sol. Faltam conversas presenciais emocionadas com os parentes, divagações íntimas sobre o que era o convívio com o criador de D&D, falta acesso ao material pessoal do biografado (emails, cartas, diários), às confissões que ele fazia em meio a períodos de pico de produção ou de tédio. Nada disso está no livro.

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Gary Gygax mais velho e, como sempre, jogando RPG (fonte)

Conclusão: recomendado!

Mesmo levando em consideração os pontos negativos, é um bom livro, pois permite acesso a informações que estão dispersas por aí, em vídeos no youtube ou em respostas de parentes aos quais não temos acesso. É uma boa compilação de informações, e passada de forma clara e boa de se ler, contando no final com uma cronologia que ajuda e muito a colocar os fatos em ordem. Para quem quer se familiarizar um pouco mais com o universo do criador de D&D e não quer perder incontáveis horas catando material disperso na internet e no youtube e depois organizando cronologicamente, é um prato cheio.

Mas a biografia deixa o leitor à espera de uma nova obra que permita um mergulho mais profundo na vida de um nerd profícuo, inventivo, tenaz, experimentador, que desbravou mares nunca antes navegados e sofreu sérios naufrágios no caminho, e mesmo assim permitiu que nós, aqui, mais de 40 anos depois, ainda nos sentemos em torno de uma mesa, vivenciando histórias fantásticas, rolando os mesmos dados poliédricos, desbravando todo um novo mundo que ajudamos a criar a cada sessão. O livro deixa bastante clara essa intenção de tributo, e sem dúvida nesse intento ele atinge plenamente seu objetivo.

É uma leitura (e um tributo) muito bem recomendada sobre a vida do mestre primevo de Greyhawk e de todos os cenários e RPGs surgidos nos últimos 40 anos, inclusive os romances de RPG e jogos de computador, que também tiveram o dedo pioneiro do mestre.

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Para esta resenha, considerou-se o ebook do original em inglês:

WITWER, Michael. Empire of Imagination: Gary Gygax and the Birth of Dungeons & Dragons; 1ªed. New York: Bloomsbury, 2015. 283 pages. E-book.

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.