Eurípedes e o filicídio em Medeia

Sacripanta
bardosbardos
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3 min readMar 1, 2020
Imagem: Mademoiselle Clairon en Médée, de Carle van Loo (1760)

Durante as Festas Dionisíacas de 431 a.C., Eurípedes apresentou sua peça Medeia ao mundo, em Atenas. Ele não ganhou o concurso, mas essa obra sobrevive, 2.451 anos depois (será essa uma das formas de enganar a Morte? Talvez). Mais informações sobre o mito, o autor e a peça podem ser facilmente encontradas na internet, então sintam-se à vontade para fazer a pesquisa; não é disso que trata esta pílula histórica, por mais apaixonante que seja o tema.

Tendo mais de dois milênios de existência, imagino que o conceito de spoiler não se aplique à peça: o clímax de Medeia é o assassinato, a sangue-frio, dos próprios filhos pelas mãos da mãe, antes de sua fuga de Corinto. Ela deve fugir da pólis, após ter causado a morte da princesa e do rei.

A cena do filicídio me incomodou enquanto assistia a tragédia, pois eu me perguntava por que ela não levou seus filhos em sua fuga da pólis.

O incômodo só aumentou quando descobri que a cena foi invenção do serelepe Eurípedes, sendo a versão mais aceita do mito a de que seus filhos foram assassinados pelas mãos vingativas dos coríntios; em todas as versões, os filhos morriam na cidade, não sobrevivendo para ver o maravilhoso céu de Atenas, onde foi se refugiar sua mãe Medeia.

Os dramaturgos gregos podiam tomar liberdades para escrever suas peças, mas eles estavam conversando com mitos existentes, explorando suas possibilidades mas não podendo divergir deles a ponto de alterar sua essência. A morte dos filhos em Corinto é um fato mitológico inalterável, pois pertence à estrutura do mito; suas motivações e forma, porém, podem ser alterados, e foi isso que Eurípedes fez.

A questão de por que Medeia não fugiu com os filhos, portanto, é improcedente: seus filhos precisam morrer, para manter fidedignidade com a história mitológica. A escolha trágica de Medeia é a seguinte: entregar seus filhos às mãos violentas da turba coríntia [para que neles seja descontada toda a raiva causada pela morte do rei e da princesa] ou de alguma forma poupá-los dessa tortura. Sair com eles da cidade, com vida, não é uma opção, restando apenas lidar com a inexorabilidade da morte deles.

A essência da escolha trágica é justamente essa: qualquer das opções é terrível. Orestes é obrigado a vingar o pai, mas é proibido de assassinar sua mãe; Antígona deve enterrar o cadáver do pai, incorrendo em sua própria morte, ou, do contrário, deve deixá-lo insepulto e arcar com as Fúrias.

Medeia escolhe poupar seus filhos do assassinato por mãos alheias, vingativas, furiosas e terríveis, tomando para si esse fardo, matando-os com mãos maternais, tomando para si as consequências de suas ações. Em vez de encarregar ao destino a morte de seus filhos, em vez de escorar-se em justificativas que impossibilitariam que ela deixasse a cidade com seus filhos, Medeia é uma personagem ciente de como termina sua própria história, e prefere ser agente a marionete, tomando para si as rédeas de como deve lidar com os pontos imutáveis de sua narrativa, preferindo lidar com a dor de viver como filicida a transformar-se em vítima que abandona os filhos à própria sorte.

Sob essa perspectiva, é mais fácil entender o que estava em jogo e a dureza dessa decisão trágica.

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.