Infância querida

Sacripanta
bardosbardos
Published in
3 min readApr 4, 2020
foto do autor

Ru_ V_ta_ _rasi_, n°-___ — Côn_go

A grama alta e as árvores com ramos retorcidos e selvagens só deixavam à mostra, no fundo do terreno em declive, o que restou de um telhado empenado. Para transpor o velho portão de madeira com vestígios de tinta verde era necessário pular o muro ou, então, puxar as grades com violência, arrancando-as das dobradiças enferrujadas presas ao pilar que contivera o número do qual não restava nenhum dígito. O filho pródigo, que a casa tornava, transpôs o muro há muito tempo despido das coroas-de-cristo de seu topo, sujando a calça na terra velha, batida e infértil que sobrou.

Andando pelo matagal, era impossível encontrar rastros de onde ficava o meio campo de futebol improvisado em que bolas de leite foram rasgadas pelos dentes brincalhões dos pastores alemães que corriam soltos, esperando o momento do bote, após um não raro chute desengonçado. Mais ao longe, perto do limoeiro combalido, de poucos frutos, ficava a cova do primeiro desses companheiros caninos, coroado por mato.

Carrapichos agarravam-se aos jeans que se aproximavam da casa de paredes ainda retas apesar da infiltração e dos tijolos aparentes. Algumas janelas heroicas mantinham em suas esquadrias alguns vidros teimosos, mas a maioria, assim como as portas, tinha desmanchado perante a voracidade de cupins ou ladrões, que tinham levado também uns poucos móveis de madeira dura, pesada, maciça. As tábuas irregulares usadas para compor os armários, mesas e cristaleira foram trazidas ilegalmente da Amazônia em um caminhão que deixou do Pará ao Rio um rastro de fumaça cor de chumbo e tomaram forma sob violentos golpes de formão e pelas mãos hábeis do pai, numa oficina improvisada aos fundos da casa, no lugar onde antes existia uma frondosa nêspera. As raízes ainda estão lá, mais invisíveis que o cômodo que as soterrou, tomado de ervas daninhas, arbustos e formigueiros.

Lustres e suas lâmpadas não podiam mais ser encontrados, mas o chão ainda exibia, orgulhoso, algumas tábuas corridas permeadas de furos, de veios carcomidos, úmidos, mofados, e também ladrilhos quebrados. Em alguns, defronte ao que restou do grande espelho cor de cobre oxidado, a quem soubesse o que procurar, era possível discernir algumas lascas recobertas de musgo, cicatrizes de garrafas partidas, gritos ébrios, palavras duras que ecoavam, mesmo depois de tanto tempo, pelos corredores outrora recobertos de injustiças, desavenças e soluços.

Numa tarde nublada como aquela, além do visitante, apenas o vento povoava a casa abandonada, varrendo incessantemente o pó preso por anos nas lágrimas e na saliva entranhada nas paredes e no chão, o que só pode ser percebido pelo filho, que sabia o que procurar em meio às ruínas da infância. Do alto da escada que levava à sala havia a porta que antes exibia vidros transparentes que abrigavam monstros e vultos aterradores surgidos do jogo de luz e sombras e que causavam tremores, troças ou desembaladas carreiras. Dali também era possível ver, olhando para outra direção, os batentes expostos do quarto ao fundo do corredor, onde monstros menos fantasmagóricos repousaram, aprisionados num jogo de ressentimento e frustrações.

Andando pela casa, as lembranças ressoavam por entre os pedaços de paredes expostos, revelando o esqueleto da alvenaria. A escadinha que levava até o alçapão aberto não estava mais lá, tornando o sótão inacessível e enterrando papéis e fotografias cuja felicidade fora lavada pelas chuvas, até se tornarem o lodo marrom que escorria pelo buraco. Mesmo do cômodo abaixo, a antiga sala de tv, era possível ver que as telhas de vidro estavam partidas. Não era possível dizer há quanto tempo. Mas o filho sabia.

Numa noite calma talvez fosse possível relembrar as brincadeiras, os jogos, as risadas compartilhadas com a irmã em meio àquelas ruínas. Mas, naquela tarde nublada, essas lembranças permaneceram recolhidas, sufocadas num pranto engasgado de anos passados em meio às paredes nuas, habitadas por fantasmas.

--

--

Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.