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Labirinto

Sacripanta
bardosbardos
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4 min readOct 31, 2018

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Uma de suas lembranças mais antigas era a de alguns jogos de vídeo-game, que jogava na sala a tarde inteira, quando os pais não estavam em casa; eram joguinhos fascinantes, de aviões que seguiam uma pista com direção única, e infinita, ou carrinhos barulhentos numa estrada também infinita, durante noite e dia, sob neve e neblina. Obstáculos se sucediam, surpreendentes, mas tudo o que bastava era seguir em frente, sempre em frente, pela estrada que se desenrolava conforme se avançava.

Da casa para a escola, pelas mesmas ruas; depois até a natação e o inglês, até chegar à faculdade. Paradas pontuadas, e se sucediam as séries, os níveis, os semestres, até chegar ao castelo final, encontrar a princesa, descobrir seu véu, beijá-la, nunca saindo daquela trilha dourada, infinita mas que apontava apenas para a frente.

Artur nunca chegou ao final daqueles jogos, talvez porque não jogasse tanto ou não tão bem, mas isso não importa. Projetou na sua vida aquela estrada fabulosa, impelido sempre à frente, ao próximo nível, ao próximo trecho que deveria ser descoberto conforme avançava.

Detestava aqueles brinquedos de montar imagens ou aquele cubo cretino que não tinha sentido nenhum, de lados com seis cores diferentes. Deixou-nos n’algum canto recôndito das lembranças da infância, e preferia as pistas infinitas que levavam sempre à frente, que permitiam deixar-se levar, por algum impulso incógnito, avante.

Em direção ao próximo estágio, em uma firma maior; ao próximo MBA, ao próximo bônus ou ao próximo concurso que lhe garantiria a estabilidade de continuar seguindo, de continuar continuando no caminho pelo qual tantos outros passaram e que lhe permitiria terminar de quitar o financiamento infinito do apartamento que comprou para morar com a princesa, que achou no meio dessa linha reta a que chamou de vida.

Mas, meu caro Artur, a vida é labirinto.

E não sou eu quem lhe diz isso, é o seu inglês que lhe traz à mente a palavra maze e que o faz pensar, à noite, enquanto trabalha, que aquela pista do avião que ele projetara na vida não é tão retilínea assim, e que a estrada não se desvela apenas seguindo-se em frente. Não há frente na cidade, há apenas um emaranhado, e a linha tortuosa que ele traçou e a que chamou de reta é apenas uma linha torta que chegou não no castelo com princesa, como pensava, mas em um sinistro beco.

O avião cretino e o carro barulhento que ele relembra nessa noite de outono, enquanto trabalha, eram solitários, e seguiam indefinidamente pelo único caminho que tinham. Ele é um solitário que caminha confuso, numa cidade barulhenta e cretina.

Não há asas de cera ou fio de Ariadne, nesse labirinto escuro, e olhar do alto não ajuda, pois não há saída, apenas uma miríade de ruas e de prédios, em sucessão infinita mas sem direção; seu carro o leva de um lugar ao outro, sem por isso levar a algum lugar. Na cidade é possível perder-se, quer evitando-a trancafiado em casa e se afogando em livros e trabalho, quer na rua, vagando por ruelas e refugiando-se em bares que parecem apontar para algum lugar lá fora que não se sabe onde. Perscrutar os apartamentos do prédio vizinho não lhe abre janelas, apenas torna a sua própria mais confusa.

Um acidente lá fora, um grito pedestre, de madrugada, tudo isso parece tão distante quanto o burburinho dentro do restaurante em que janta. Artur recrimina-se por ter encontrado a chave com que se tranca tanto dentro do quanto fora de casa, é a sua resposta por não ter encontrado o caminho retilíneo que pensou ter forjado, e continua a fazer-se as perguntas erradas: onde se desviou, ou por que atalho pode retomar a rota que, sabe-se lá por que, abandonou. Ele, como muitos, ainda não aceitou que essa trilha foi desfeita, que ela se embaralha com muitas outras que não levam a lugar nenhum, e continua a evocar o passado para construir o futuro, num esforço inútil e lamentável, pois não há como domar esse novelo e desembaralhar seus fios.

No prédio em frente, sem que ele saiba, sem que ele se importe ou sequer cogite, há um senhor, num apartamento mal ventilado, que passa o dia remoendo seu passado, embriagando-se para que a noite passe mais depressa e lhe traga as lembranças e os cheiros de um tempo em que ele pensava saber lidar com o labirinto. E esse senhor não é o único.

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escrito em 26.03.12

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.