Star Wars, esquerda e direita

Sacripanta
bardosbardos

--

Introdução

Contrariando meus votos, fui assistir ‘Os Últimos Jedis’ no cinema. Fiz isso por um bom motivo, porém: continuar o aprendizado de meu jovem padawan/curumim nos caminhos da Força. Talvez algum dia ele se volte ao lado negro da Força e se rebele contra seu pai, mas isso não vem ao caso.

Decidi parar de ver essa nova leva de filmes porque eles têm a missão inglória de agradar um fã da trilogia original e, em muito menor escala, da segunda trilogia -apesar do esforços ativos dos diretores para causar tristeza e ressentimento nos fãs mais antigos. Acreditava que os novos filmes não têm mais falhas no roteiro nem são notoriamente inferiores ao demais. É só que parecia que não me trariam nostalgia e não me empolgariam, deixando patentes demais seus problemas.

Esse posicionamento é uma grande besteira, porém: postura de gente velha, e agora que já digeri o filme, estou ansioso pelos novos desdobramentos. Temos que aproveitar as alegrias, tristezas, atuações ruins e roteiros previsíveis que nos aguardam, pois eles também fazem parte da diversão.

Esclarecidos esses pontos, o que me motivou a escrever não foi a tentação facilmente descartada de fazer uma resenha do filme, e sim a recorrência de análises e discussões sobre as conotações político-ideológicas d’Os Últimos Jedis. Um colunista menor e um crítico de cinema deram suas opiniões sobre o segundo filme da terceira trilogia, e essa opinões ressoaram em alguns grupos de amigos.

Os autointitulados de esquerda se animaram por verem nele uma luta da esquerda contra a direita, e os outros ficaram incomodados porque viram uma desagradável guinada à esquerda dos heróis (no caso, a Aliança Rebelde, que agora tem um novo nome, Resistência).

Claramente esse texto não pretende abarcar todos aqueles que se dizem de direita e de esquerda. Ele parte, tão somente, de experiências cotidianas com colegas que partilharam suas opiniões sobre os filmes com base em seus posicionamentos políticos e também da leitura dos textos dos supostos formadores de opinião mencionados mas não citados.

Sem querer entrar no que é direita e o que é esquerda, eu não poderia discordar mais de ambas as visões sobre o filme.

Império (direita) versus Aliança Rebelde (esquerda)

Discordo de quem viu no filme (ou nas trilogias) como uma luta de esquerda contra direita porque em momento algum é evidenciado qualquer tipo de preocupação social na natureza da oposição ao Império (agora chamado de Primeira Ordem). Os rebeldes querem apenas se livrar de um regime opressor. E ponto. Não está em jogo nenhuma mudança do sistema produtivo ou de suas bases, não é questionada a exploração ou mesmo o escravagismo. A Aliança não luta pela igualdade social, apenas pela liberdade individual. Podemos associar isso ao liberalismo, republicanismo, democracia, ao que quer que seja, mas trata-se tão somente de uma luta contra um regime autoritário. Esse regime não parece ser nem totalitário, nem de esquerda. É uma ditadura, e a luta contra a ditadura e os males a ela associado não é marca registrada da esquerda.

Entendo que no Brasil possa haver essa associação, tendo em vista que a esquerda foi um dos baluartes mais notórios do combate à ditadura de 1964 -e ela pagou caro por isso. Todavia, ela não deteve seu monopólio, e dificilmente essa associação poderá ser feita no resto do mundo, posto regimes de esquerda radical terem espalhado governos autoritários (e totalitários) em diversos países. Dessa forma, reduzir a luta contra o autoritarismo em Guerra nas Estrelas a uma luta entre esquerda e direita me parece um argumento forçado, fraco e oportunista, e os filmes não fornecem elementos para subsidiá-la.

Os Últimos Jedis = manifesto de esquerda

Confesso que fiquei sem compreender o motivo, da primeira vez que ouvi que o filme marca uma “guinada à esquerda” da série, e tive que pedir explicação. Parece que foi identificado um “kit esquerdista” no filme, que consiste em personagens multi-étnicos, protagonismo feminino e veganismo. Lendo isso, me perguntei se o filme ficou a um relacionamento homossexual e um advogado de direitos humanos de se tornar um panfleto esquerdista (não riam, mas eu ouvi uma resposta afirmativa a isso, quando perguntei).

Essa associação é tão sem fundamentos quanto a anterior, com o adicional de que não se trata apenas de uma confusão de conceitos que pode ter por motivação a atual configuração política do país, e sim também a confusão de uma questão moral (e legal).

O filme possui um protagonista negro e outra asiática, e os cargos de liderança da Aliança contam com representantes mulheres. Se essas situações não são tão comuns nas telas quanto na vida cotidiana, isso se deve a outros fatores, como racismo e preconceito, aliados a séculos de opressão e subjugação. Nossos valores, felizmente, estão mudando, e já há algum tempo abolimos, moral e legalmente, a discriminação a cor da pele ou sexo. O filme reflete essa mudança de valores, colocando inclusive uma protagonista (Rey) não sexualizada , característica tradicionalmente associada às atrizes (basta lembrar da Princesa Leia, na trilogia original).

Atribuir a igualdade de gêneros e de raça à esquerda é algo que se aproxima da esquizofrenia conceitual, mas é verdade também que isso pode ter como motivação o infeliz cenário político brasileiro, em que muitos dos arautos de partidos conservadores de direita assumem posições retrógradas em relação às ações de afirmação de igualdade de negros e mulheres, Com efeito, essas são bandeiras são mais fortemente associadas a partidos [ditos] de esquerda, embasadas por uma ideia ampla de igualdade social.

Todavia, essa divisão de bandeiras isso não torna mais palatável a confusão, pelo contrário: esse discurso serve, muitas vezes, para mascarar atitudes racistas e o preconceituosas, duas coisas inaceitáveis do ponto de vista moral e cada vez mais indefensáveis na sociedade. A defesa de direitos iguais, independente de credo, classe ou cor não pode ser monopólio de um partido, ou de uma ideologia, tendo em vista os avanços sociais das últimas décadas e a letra dura de nossas leis.

Conclusão

Tanto uma visão quanto a outra partem do mesmo princípio raso: atribuir ao outro aquilo de que discordam. É por isso, acredito, que quem se vê como sendo de esquerda classifica o Império como sendo de direita. Ele encarna o autoritarismo, o controle, o mal, aquilo contra o qual se deve lutar, enquanto a Aliança, contra todas as probabilidades econômicas e políticas, representa e resistência, a esperança.

Por outro lado, quem se autointitula de direita, seguindo as premissas contestáveis de determinados políticos, não se espelha na Aliança Rebelde: multi-étnica, com mulheres fortes e até mesmo propensa ao veganismo (essa última, numa clara incapacidade de entender a empatia como impulso transformador, pois é ao ver a presa viva que Chewbacca compreende a consequência de sua ação). Ele não se espelha no Império, claro, porque esse é mau. Daí seu incômodo com o filme.

--

--

Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.