Uma visita bárbara

Sacripanta
bardosbardos
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5 min readApr 4, 2020
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O dia de hoje foi, sob diversos aspectos, muito curioso. Quando despertei, havia ao meu lado uma mulher de cabelos negros, pele branca como leite, corpo esguio, de blusa, sem sutiã e apenas de calcinha. Eu estava nu. Decerto, tendo sido ontem sexta-feira, bebi cerveja e vinho, mas nada que me tirasse os sentidos. Fui dormir às quatro da manhã, plenamente consciente, e sozinho.

Olhei em volta, e vi que tudo o que era antes um, eram agora dois: dois eram os copos vazios de cerveja, na escrivaninha; duas as taças de vinho, e duas as cumbucas de torradas do fondue, agora com metade do que deixei ontem; duas também eram as embalagens de tabaco em cima da mesa, o mesmo tabaco que encomendei do Sul, há duas semanas. E dois eram os corpos na cama.

Atônito, pensei estar embriagado. Mas meus pensamentos eram claros e sonolentos como o dia nublado lá fora. Tudo estava em seu devido lugar, a não ser por esses incompreensíveis pares.

Não sei bem por que impulso, mas como a cama era minha, e a pele dela, bela e macia, beijei ombros e nuca da desconhecida. Ela se aninhou em meu peito, como se ele lhe fosse familiar. Permaneci imóvel, talvez porque seu corpo era quente e eu sentia frio, talvez porque ainda estivesse tentando explicar como, entre as quatro da manhã e o meio-dia, essa mulher de cabelos negros como as asas da graúna entrou em meu quarto, bebeu do meu vinho, da minha cerveja e comeu do meu fondue.

Não tive tempo de elaborar explicação satisfatória, pois os olhos escuros dessa mulher inescrutável se abriram, e me deram Bom dia, ******inho (ninguém me chama pelo diminutivo), e seu rosto veio em direção ao meu, como se esse fosse um caminho familiar. Seus lábios eram de mel, e eu os aceitei.

Aceitei e não me desvencilhei do beijo inesperado daquela mulher agora talvez familiar mas desconhecida, talvez devido à doçura daquele beijo, talvez devido à surpresa que não me deixou agir.

Depois do beijo, me vi envolvido em um abraço tão sincero que a senti por inteiro: respiração, pele, suspiro, calor, e me foi impossível resistir. Retribuí o afeto espontâneo daquela desconhecida que me tratava como se me conhecesse há tempos.

Minha língua ainda estava adormecida depois daquele beijo, e não consegui fazer as perguntas para resolver o mistério. Meu corpo, em contrapartida, longe de estar adormecido, só conseguia responder ao dela, agora estranhamente íntimo, que parecia ansiar pelo meu tanto quanto eu ansiava pelo dela.

Cedendo ao desejo do corpo, esperava retomar controle sobre minha língua que se emaranhava a sua boca e pele e colo, mas antes de chegar aos seios, arfei, respirei fundo e juntei todo o meu autocontrole para dizer-lhe: (Quem é você? Duas taças? Dois copos? Dois corpos?), mas as palavras retornaram à minha garganta, engasgadas; em vez das perguntas que tinha, tudo o que consegui, com toda minha vontade e autocontrole, foi Te quero. As mãos se multiplicaram, e pareciam oito; as línguas, quatro; o desejo, um; as palavras, silêncio.

A mulher desconhecida e desejada, de cabelos negros como as asas da graúna e lábios de mel, definitivamente não era virgem.

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Ao fim e ao cabo, seus olhos vacilaram, procuravam algo. Pensei ser sua bolsa, que eu ainda não vira, ou suas roupas. Tive receio: que ela fosse embora sem nada responder. As palavras voltaram à minha boca, mas falavam de Bauman, Freud, Zizek, Woody Allen, Monty Python, Serge Gainsbourg e Françoise Hardy; apelei aos astros terrenos e d’além, para conseguir fazer retornar àqueles olhos a mim. Talvez por vaidade, ou sabe-se lá por quê, eu os queria de volta.

Não sei se o intelectualismo barato, a comédia cult ou a música francesa, mas seus olhos negros, desinibidos, se voltaram para mim. E se voltaram com demanda de carinho, e se voltaram para meu corpo nu, exposto, e se arregalaram em um grito mudo de espanto.

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O sangue deve ter um número rico de significados semióticos. Mas, em uma alcova, não tendo havido dor ou deflora, só pode significar uma coisa. Em vez de correr à procura de um absorvente ou toalha que fosse, seus olhos pousaram no lençol marcado, no meu pau rubro e em sua buceta avermelhada. E se voltaram para mim, em desespero.

E as primeiras palavras desde o familiar Bom dia foram vitupérios enraivecidos, insinuações infundadas, exclamações atordoadas, Acabou-se meu tempo, Chegou minha hora, Junto dessa quantidade de sangue, a hemorragia, a Morte leva-me embora. E seus olhos se encerraram n’algum ponto invisível do quarto, entre meu copo e o copo que lá não estava quando fui dormir; entre meu corpo que ali estava e o dela, que pela manhã surgiu.

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Eu deveria ter ido embora. Me abrigado de minha própria casa. Me protegido da desconhecida. Mas meu corpo mais uma vez me traiu, e eu a abracei, não com desejo, mas com cuidado, e meus lábios mais uma vez se calaram e, em vez de fazer as perguntas que eu queria, enxugaram-lhe as lágrimas.

Com olhar suplicante e consternado, anunciou-me sua partida: naquele leito que lhe era caro, o coração fraquejava, e o sangue esvaía. Devia eu fazer-lhe o inventário, antes que por demais fosse a hora tardia.

Papel e caneta peguei, e vi que de seu espólio muita coisa me cabia: cinzeiros e quadros e livros, e muitas coisas de pequena monta, em que eu via muita serventia (quem é essa desconhecida, que de mim tanto sabia? Mas não pude articular a pergunta, pois itens e destinatários incessantemente ela dizia).

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Quando, e já era final da tarde, voltou a si, muitos beijos e carícias recebi, e não pude senão retribuir: talvez pela alegria de vê-la restabelecida, talvez por perceber adiada a sua partida. Dessa vez, o sangue não a incomodou, e das manchas chegou mesmo a rir.

Ainda que incapaz de qualquer pergunta pertinente proferir, invejável estratagema concebi: um jantar suntuoso, com carnes nobres, grãos, salada e cerveja, que agradaria até ao tinhoso.

Quando me fui à cozinha preparar a refeição ligeira, a mulher de cabelos negros pegou seus pertences e, sorrateira, esquivou-se de minhas perguntas indo-se rapidamente ganhar as ruas.

Horas depois, sem que eu esperasse palavra, mandou-me mensagens de pesares pelo jantar perdido. E também de saudades.

Ainda não sei quem é essa desconhecida esquiva, lasciva, que tantas perguntas deixou nos ares. Ficaram-me os pares de copos por lavar, e também os lençóis, além do mistério não resolvido. Mas esse já não importa. Qualquer dia, sem avisar, quem sabe ela não me volta pela porta?

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Sacripanta
bardosbardos

Sociólogo de esquerda, terraglobista, cético, ético, etílico, da baderna e gritaria.