CARTA ABERTA DE UM HOMEM INVISÍVEL

Crescer é deixar pra trás a inocência, é perder um pouco do que te faz ser único, mesmo que viva em meio a uma multidão.

Daniel Souza
Base Mao
5 min readApr 28, 2021

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Ilustração de Mimmo Paladino.

Quando eu nasci, não chorei. Olhei para aquele mundo novo e apenas sorri, empolgado com o que viria a seguir. Tudo parecia tão palatável e as possibilidades infinitas. Meu sorriso, fixo naquele rosto engelhado e sujo, queria dizer muitas coisas. A principal delas, eu existo. Estou aqui, irei ver e viver muitas coisas, e aquilo, aquele pequeno gesto facial guardava consigo toda uma carga emocional pueril, inocente, de alguém que não conhecia o cruel mundo que acabara de cair de paraquedas. Ledo engano.

Era inocente, portanto, acreditava que a luz que nos rodeia era sinal de bonança. Aliás, só enxergava sinais positivos em tudo ao meu redor, como se o mundo fosse uma eterna festa de aniversário. Tinha minha fiel escudeira, que me carregava no colo e me alimentava, mesmo que eu não merecesse tal cuidado. Sentir o seu calor e o batimento de seu coração, agora, no mundo externo, me acalmava de qualquer sentimento ruim que pudesse brotar. Segurança plena, eu diria. Ledo engano.

Fui crescendo e conhecendo o mundo, e toda aquela magia inicial, pouco a pouco, foi me deixando e sendo substituída por outros sentimentos, até então desconhecidos. Medo, raiva, rancor, ansiedade… Os quatro cavaleiros do meu próprio apocalipse. Crescer é deixar pra trás a inocência, é perder um pouco do que te faz ser único, mesmo que viva em meio a uma multidão. Crescer é conhecer as derrotas, aceitando-as ou não. É deixar a fase dos sorrisos para conhecer a sisudez do mundo. E eu achava que já sabia de tudo. Ledo engano.

Digo e repito, aproveitem a infância enquanto podem, pois um dia, talvez, você se arrependa de não ter a vivido plenamente. Crescer é passar a obedecer regras, a viver em grupo, a repetir gestos, a andar sobre uma corda bamba, sem nenhuma segurança, bailando de um lado a outro, tendo apenas a imensidão de um infinito sem cores. Cair nele, é perder tudo o que um dia foi. Tudo o que você imaginou que um dia seria. Mais uma vez, ledo, ledo engano.

Passamos por uma transição um tanto difícil, dura e bastante incoerente. Somos obrigados a andar em pares, a dividir a vida, e seguir uma linha reta, sem poder fazer uma mísera curva sequer, ou então, caímos no infinito, que irá sugar até a última cor de nossas íris. É duro, mas é a mais pura verdade. Viver em bloco não é fácil, ser alguém dentro dele mais ainda. Você facilmente se destaca quando nasce, é aceito e se torna o centro do universo de algumas pessoas, mas, quando esse brilho se apaga e necessitamos correr atrás de uma nova luz, bom, nada disso está disponível na ponta dos dedos. Imaginamos e imaginamos uma vida de bonança, antes de sermos sodomizados pelo cruel mundo. Ledo, meus amigos, ledo engano.

Em meio à multidão você é apenas mais um pedaço de carne ambulante pronto para ser devorado pelas engrenagens do mundo, servindo de composto para o solo, ou ração para outros animais. Você pisa em ovos podres todo santo dia, mas nunca, nunca é o suficiente. Você nunca é importante o bastante, bonito o bastante, nunca tem o peso ideal, o rosto ideal e, muitas vezes, se esquecem de um ponto que poucos presam, o caráter. Esse sim é desprezado totalmente. Mas você pode crescer, sim, você pode. Se montar no número certo de pessoas, pisoteando-as da pior maneira possível, aí talvez você consiga, e eu digo apenas talvez, ser alguém. Mas nunca parece ser o suficiente. Você sempre está enganado, sempre.

Em um mundo onde os bens são mais importantes do que aquilo que se tem no coração de cada pessoa, é comum esquecer quem você é para embarcar em uma jornada tentando descobrir justamente que você nunca irá se encaixar. Você não significa nada para o mundo, é apenas mais um número, mais um a ser pisado ou a pisar em alguém, mas nunca um alguém completo. Ele exige até sua última gota de suor e sangue, e depois que o tiver por completo vai te chutar na primeira oportunidade, e então, nada do que foi feito terá valido. Que porcaria de engano, não?

Seja você mesmo, faça por merecer, vença, trabalhe enquanto eles dormem, seja relevante… E blá, blá, blá. Nunca é o bastante. Aqueles que pisaram nas pessoas certas, ou que já nasceram plenamente privilegiados, ditam as regras que devem ser seguidas. Assim, a risca, eles seguirão no comando enquanto você paga com a alma o bem estar deles. Trabalhe, trabalhe e trabalhe. Nunca, nunca será o suficiente. E como dizem, tudo que é ruim tende a piorar, portanto, não foi um susto, não para mim, quando o mundo virou de cabeça para baixo. Estamos em um novo mundo agora, com apenas uma diferença. Ele é muito mais cruel que o anterior.

Se lidávamos com decepções, hoje lidamos diretamente com a morte. As piadas deixaram de ser engraçadas para se tornar um emaranhado de palavras jogadas ao vento, sem significado aparente. Tudo que está pior ainda pode piorar, não nos esqueçamos disso. Como vinha dizendo, crescer é encarar a crueldade, é lidar com a barbárie e com a injustiça, e ainda assim, acordar plenamente no dia seguinte para mais uma dança com a morte. Se pisarmos nos pés dela, meus amigos, cairemos todos. Tudo é muito mais rápido no novo mundo. As engrenagens giram, absortas, para todos os lados agora.

Falei para vocês que eu sou um herói? Mas sou de um tipo diferente. Tenho poderes, mas não tenho como usá-los. Minha inutilidade e insignificância me impede de sair voando por aí e salvando as pessoas. Estou tão condenado quanto todas elas. E tudo o que posso fazer é assistir a desgraça de camarote. Sou um homem invisível, mas carrego uma maldição. Sou invisível o tempo inteiro, não tenho como controlar. Já tentei de tudo o que podia, mas não consigo reverter isso. A sociedade não me enxerga, e como não me vê, acha que simplesmente não existo. Nesse novo mundo, para os irmãos invisíveis como eu, não nos resta nada mais do que a insignificância. E não há esperança de melhoras. Padeceremos com nossos poderes nesse ciclo infernal sem fim.

Girando e girando sem parar.

Queria muito voltar a infância, quando todos conseguiam me enxergar. Lá eu estava seguro, longe do perigo, sendo bem tratado e acolhido. E para aqueles que por alguma razão tiveram de lidar com a invisibilidade desde sempre, deixo aqui meus sentimentos de solidariedade. Afinal de contas, estamos todos no mesmo barco, camaradas. Nada seremos, e quando acabar, tudo o que restará de nós é apenas poeira e ossos.

Mas preciso encarar a realidade dos fatos, e meus poderes em nada poderão me ajudar nesse sentido. Sei que os carregarei comigo para sempre, pois não tenho mais esperança de nada. Jamais salvarei ninguém e jamais ganharei uma medalha de coragem, como os heróis dos filmes. Meu gesto de heroísmo é escrever essa carta aberta para que todos possam lê-la, e para aqueles que assim como, tentam se encontrar e se encaixar no joguete da aceitação. Mas se lembrem sempre, nunca, nunca será o suficiente. Enquanto as regras do mundo, pioradas nesse novo mundo não forem mudadas, outros homens e mulheres invisíveis serão dragados pela crueldade dessa doce realidade. Não se iludam e não se enganem.

Uma vez invisível, para sempre invisível.

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