DIÁLOGO NO SUBSOLO

O segredo é este: só existem duas coisas na vida: o indivíduo e o poder.

Matheus Cascaes
Base Mao
8 min readMay 8, 2021

--

sem título, de Giovanne Reis

As coisas são assim mesmo. Nada pode ser feito. Se tivermos de nos sacrificar para a sobrevivência do sistema, tudo bem. Será só mais um infortúnio. A vida é mesmo só um sopro.

Você está maluco?! Fale por você! Não estou disposto a abrir mão da minha vida assim tão facilmente. Se o sistema acha que devemos morrer para que ele continue a existir, é esse sistema que não pode mais existir! Afinal, quem faz o sistema não somos nós?

Para que tanta exaltação, meu amigo? Acalme-se um pouco. Entenda: isso é como ir de cabeça contra a parede. Você pode lutar o quanto quiser; no fim das contas, a realidade se imporá. Não acha melhor, enquanto a hora não chega, viver sua vida como sempre, voltar a tomar sua cervejinha, abraçar uns amigos, em paz? A paz é o melhor dos bens que um homem pode possuir.

Não ficarei em paz, enquanto a morte estiver rondando por aí, sempre à espreita.

Então a perturbação nunca o abandonará. De qualquer forma que você viva, a morte sempre — sempre — estará à espreita.

Mas existem mortes que são evitáveis. Se a morte um dia chegar, ainda que contrariado, aceitarei. O que não farei é me jogar nos braços dela. Não admito morrer de uma maneira que poderia ser evitada. Minha vida não vale tão pouco.

Entendo a sua preocupação. De todo modo, a morte talvez nunca chegue a você. Apenas 1% da população perderá a vida, e você não faz parte dos grupos que correm risco.

Não têm morrido apenas pessoas pertencentes a esses grupos.

Sim, mas as chances ainda são ínfimas. Faça as contas. É matemática pura.

Ainda assim, é como jogar roleta-russa.

Vale todo o esforço lutar contra isso, sabendo que o revólver, quando chegar à sua cabeça, tem grandes chances de estar descarregado? As sequelas psicológicas podem ser profundas.

Se vale, eu não sei. Tudo o que sei é que quero ter a liberdade de escolher não jogar esse jogo macabro. Além disso, como ficam as pessoas que pertencem aos grupos que correm risco? Elas devem ser exterminadas?

Exterminadas é um exagero. Nem todas morrerão. Apenas aquelas que estiverem no lugar errado na hora errada; aquelas a quem o destino escolher. Além do mais, elas escolheram assim.

Nem todas. A maior parte delas pensa como eu e quer viver. Pergunte ao primeiro que passar por você.

Tem certeza? Se pensam como você, por que é que você tem estado frustrado, exaltado, pensando que as coisas deveriam ser de outra maneira. Acho que você sabe tão bem quanto eu que o que mais importa não é o que as pessoas acham ou falam, mas como elas agem. A escolha só se concretiza no momento da ação. E o que temos diante de nós? Pessoas abraçando o fatalismo, escolhendo arriscar a sua vida para que o sistema se mantenha e as coisas continuem como estão.

Nem todas estão escolhendo isso! Eu não escolho!

Verdade, mas a maioria está. E o que importa é o que a maioria escolhe. Como diz o “gênio” que governa o nosso país, “as minorias devem se curvar às maiorias”. Ah, ah, ah! Admiro-me por você dizer que defende a liberdade e querer a imposição da vontade de uma minoria. Você acha mesmo que o que você quer é o melhor para todos, que todos, no fundo, querem o mesmo que você? É uma mente bem tirana a sua, não concorda?

Democracia não se trata da imposição da vontade da maioria sobre as minorias. Ainda que eu pertença a minoria, não serei livre, se a vontade da maioria se impor sobre mim.

E quem disse que a democracia se trata de fornecer a todos a liberdade de escolha? Os interesses de todas as pessoas nunca — nunca — confluirão, até porque isso é impossível. A liberdade que ela fornece — que é a única real e possível — é apenas a liberdade matemática de a maioria poder definir os rumos de todos e, desse modo, promover a manutenção da paz, do conforto e o apaziguamento dos conflitos. Afinal, se a maioria decide, dificilmente a minoria conseguirá se contrapor, e a paz é mantida. A liberdade promovida pela democracia é, portanto, somente a promoção da paz e do sossego. Esse é o máximo que conseguimos enquanto humanidade. Ir contra isso é ir contra a democracia. É por essa razão que defender a democracia é sempre — sempre — uma postura conservadora.

Nem essa paz, nem essa liberdade são autênticas, se todos não têm acesso a elas. Uma democracia verdadeira forneceria paz e liberdade a todos.

“Democracia verdadeira”?! Ah, já entendi, você é um niilista. Você defende as ideias de uma paz, de uma liberdade e de uma democracia que nunca existiram. Você acha que elas existirão somente no futuro, juntamente com o reino dos céus, quando vencermos o Mal. Ah, ah, ah! Menino, paz, democracia e liberdade já existem. Podem não ser como no seu conto de fadas, mas existem. Elas são o que são. Se você não gosta de como elas são, tudo bem. Você pode tentar mudar a realidade e eliminá-las. Mas você precisa ter clareza de que você luta contra elas, e não em favor delas. O que talvez você não tenha compreendido é que a história da humanidade é a história da vontade de poder. A única lei eterna e imutável é a do dente e do porrete. Até os animais sabem disso. Se isso vai mudar um dia, não sei. Acho pouco provável. Nunca foi diferente. Mas isso você não pode negar, especialmente se você quer se revoltar contra o que está dado. Revolta não tem nada a ver com busca por uma integração humana, como aquele francesinho medroso nascido na Argélia falava. Pouca diferença há entre revolta e revolução. Revolta implica vontade de revolução, e revolução implica exercício de poder. Toda revolta, é, em última instância, autoritária e violenta. A ideia de uma revolta pacífica serve apenas para tirar o peso das consciências culpadas — seja da do conservador que tem vergonha de sê-lo, seja da do revolucionário que se diz não violento. Nenhum revoltado pensa em todos os homens — ou melhor, somente em todos os homens. Antes de tudo, ele pensa em si e no poder.

Você fala como se essa “democracia” fosse totalmente pacífica. Impor a todas as pessoas uma roleta-russa é um ato extremamente autoritário e violento. Levar centenas de milhares de pessoas à morte em prol da sobrevivência de um sistema nem se fala.

E quem foi que disse a você que eu nego isso? Achei que tinha ficado claro que, quando falei que a democracia promovia a manutenção da paz, não era para todos, e sim para o sistema inteiro e para a maioria que dele se beneficia. Quanto ao meu ponto de vista, apenas defendo que as coisas sigam seu rumo. Assim podemos manter a democracia, a paz e a liberdade.

Você me acusa de niilista, mas trata princípios abstratos, como democracia, paz e liberdade como se fossem vivos e os coloca acima da vida verdadeira. Acho que o verdadeiro niilista aqui é você.

sem título, de Giovanne Reis

Será?… É, talvez eu seja niilista mesmo, em alguma medida, mas, no momento, não mais que você. Não me leve a mal. Niilista não é palavrão. Apenas constato a realidade. Aliás, como não ser niilista vivendo hoje? Na verdade, o que eu quero dizer é que nós dois, cada um com seu ceticismo radical, em última instância, voltamos a alguma crença. Nesse sentido, somos profundamente parecidos — e niilistas! Ah, ah, ah! Mas eu me aproximo muito mais do real e da vida viva e sou muito mais materialista que você — que se denomina dessa forma. Isso porque esses “princípios” não são deuses a quem eu devo devoção e que me impedem de agir na realidade, como são para você. Para mim, eles são apenas nomes. O que importa, para mim, não é a defesa apaixonada deles, mas como eu os uso para sustentar meus próprios interesses. Aliás, vou revelar, agora, um segredo que tenho certeza de que você vai recusar de todas as formas. O segredo é este: só existem duas coisas na vida: o indivíduo e o poder. Tudo o que o indivíduo faz é em nome dos próprios interesses, que nada mais são que exercícios de poder. Conheço você bem. Sei que você não vai aceitar essa realidade por conta do seu “amor” pela humanidade e pela coletividade. Por conta desses princípios, você vai me acusar de niilista e vai dizer que sou eu quem supostamente defende um princípio universal ilusório, e vamos continuar nesse ciclo indefinidamente. Mas tudo isso só provará que eu estou certo, pois serão os meus interesses que continuarão se impondo, mas você não perceberá. Até porque você crê na teoria como sendo aquilo que fornece a verdadeira visão do real. Por conta disso, você é incapaz de ver que teorias, filosofias, ciências, saberes e blá-blá-blá só são isto mesmo: armas retóricas para sustentar os interesses de quem as elaborou. Com exceção de Maquiavel, tudo é engodo. O real não é a teoria, mas o que está antes dela. Como já falei, o que importa não é o que as pessoas pensam ou falam, mas como agem. E a minha ação mostra todos os dias que eu estou certo, porque eu consigo que o mundo siga o rumo que eu quero. A prática prova a verdade. Você, por outro lado, ao invés de assumir que, no fundo, é como eu, embora tenha interesses opostos, só se frustra e fica tagarelando por aí. Tagarelando e pensando, pensando e tagarelando, e nada faz. Já disse um cara muito parecido conosco que o destino de todo homem que fala e pensa muito é o imobilismo. Eu aceito o imobilismo, porque ele é bom para mim e o escolhi. Já você não assume para si mesmo que fez a mesma escolha e, com isso, vai sofrendo do fígado. Quer mesmo mudança? Então, deixe de moralismo, pare de falar e aja. Você adora acusar os conservadores disso, mas é como um verdadeiro monge — não como os de Myanmar, claro. Está cansado da brutalidade do conformismo, então imponha a brutalidade da mudança; ou assuma a covardia e o fatalismo. Pela sua falta de reação ao meu cuspe na sua cara, acho que já sei o que escolheu. É, embora a covardia também derrame sangue, pelo menos não suja o covarde.

--

--