ENCRUZILHADA DO PENSAMENTO CRÍTICO E A CRISE DOS INTELECTUAIS, POR RAÚL ZIBECHI E DECIO MACHADO

O pensamento crítico não pode estar atado aos poderes existentes e deve se estender livremente, com espacial vocação autocrítica, não por masoquismo, mas pelo interesse que todo rebelde deve ter em fazer balanço para ajustar suas práticas.

Base Mao
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10 min readMay 15, 2021

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Latinoamérica, por Maria Florencio

Uma das consequências mais nefastas do período progressista é a deserção de uma geração quase completa de profissionais acadêmicos de seu papel de impulsionadores do pensamento crítico. Poucas vezes na história assistimos a uma combinação tão extensa de simplificação do pensamento e de atitude conformista como a que observamos nestes anos. Chama a atenção que alguns dos mais difundidos profissionais das ideias sejam capazes de comparar, por exemplo, Putin com Lênin, e que outros defendam com veemência seus governos, com o pobre argumento de que diminuíram a pobreza.

A comparação entre o revolucionário e o ex-integrante da KGB transformado em presidente é uma mostra do que o subcomandante Galeano denominara como “pensamento preguiçoso”. Fazer finca-pé na pobreza como argumento central na defesa do progressismo é parecido com jogar fora os ricos debates havidos em cada uma das revoluções triunfantes por causa de um pensamento adaptado à lógica do Banco Mundial que fez do “combate à pobreza” sua estratégia de disciplinar sociedades.

Aqueles potentes debates sobre o “socialismo em um só país” entre os partidários de Trótski e de Stálin; sobre os caminhos para superar a oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual entre os dirigentes e dirigidos durante a revolução cultural chinesa; ou a controvérsia sobre a lei do valor nas sociedades de transição que protagonizara Che com Mandel e Bettelheim, de que também participou Paul Sweezy, entre outros, parecem coisas de outro mundo ao lado das cinzas e penosas argumentações que ouvimos nestes anos.

Há várias razoes que podem explicar esta deterioração. O trabalho do intelectual não é um ofício ou profissão, mas uma tarefa coletiva a serviço dos sujeitos coletivos em luta. O pensamento crítico não pode estar atado aos poderes existentes e deve se estender livremente, com espacial vocação autocrítica, não por masoquismo, mas pelo interesse que todo rebelde deve ter em fazer balanço para ajustar suas práticas.

Segundo a literatura sobre o tema, o nascimento do termo intelectual — tal como o concebemos na atualidade — tem sua origem na França, no final do século XIX, fruto da atividade solidária com Alfred Dreyfus (caso Dreyfus), um capitão do exército francês, judeu de origem, que apesar da fragilidade das provas, foi considerado culpado de alta traição por entregar informação secreta ao agregado militar alemão em Paris e foi condenado à cadeia perpétua na mítica Ilha do Diabo, a onze quilômetros da costa da Guiana Francesa.

Um discurso a favor do capitão Dreyfus escrito por Émile Zola — máximo expoente do naturalismo literário — publicado pelo jornal L’Aurore no dia 13 de janeiro de 1898 sob o título J’accuse… (eu acuso), transformou-se no dia seguinte num manifesto cujo cabeçalho era um Protesto. Anatole France, Pierre Louÿs, Charles Seignobos, Marcel Proust e Charles Péguy foram signatários, dentre muitos outros. George Clemenceau, chefe da redação do L’Aurore os definiria como “esses intelectuais que se agrupam em torno de uma ideia e se mantêm inquebrantáveis”.

Na Rússia, alguns anos mais tarde, desenvolver-se-á o termo intelligentsia, como bem indica o sociólogo Carlos Altamirano, para conceber-se a si mesmo como um segmento cultural “com missão redentora” (ALTAMIRANO, 2013, p. 35). O vocábulo “intelectuais” terminará convivendo com o de intelligentsia” de maneira indistinta.

Altamirano, em sua obra Intelectuais, destaca a formulação clássica desta concepção no manifesto publicado em 1928 por Julien Brenda, A traição dos intelectuais. No citado texto, destaca-se a função do intelectual não como política nem sociológica, “mas transcendente e de ordem moral” (ALTAMIRANO, 2013, p. 39). Breda indica que “me parece importante que existam homens que, mesmo incomodando, guiem seus semelhantes a outras religiões que não sejam as temporais. Mas aqueles que carregam o fardo dessa tarefa, e eu os chamo de ‘clérigos’, não somente não o enfrentam, mas cumprem precisamente com a tarefa contrária”.

Jean-Paul Sartre foi mais além e no ano de 1945 escreveu na revista Le Temps Modernes: “considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela representação que seguiu à Comuna porque não escreveram nenhuma palavra para impedi-la”. Para o pai do existencialismo, a missão de um intelectual é proporcionar à sociedade uma “consciência inquieta” de si mesma, “uma consciência que arranque do imediatismo e desperte a reflexão” (ALTAMIRANO, 2013, p. 46). Trata-se então de um intelectual comprometido e crítico, mas autônomo em relação aos poderes e aos aparatos políticos — nem sujeito ao poder político ou religioso, nem subordinado ao partido revolucionário.

Por último, cabe resgatar aqui ao palestino Edward Said, que em Representações do intelectual (1996) sentencia:

Basicamente, o intelectual […] não é nem um pacificador nem um fabricante de consenso, mas alguém que apostou com todo o seu ser a favor do sentido crítico, e que, portanto, se nega a aceitar fórmulas fáceis, ou clichês estereotipados, ou as confirmações tranquilizadoras ou acomodatícias do que tem a dizer o poderoso ou convencional, assim como o que estes fazem (SAID, 1996, p. 39).

Altamirano resume o pensamento de Said, identificando-o como “contraditor do poder, perturbador do status quo seu papel é do franco-atirador: suscita publicamente questões incômodas para os governantes, desafia as ortodoxias religiosas e ideológicas de sua sociedade, e seu espírito indócil não se deixa domesticar pelas instituições” (ALTAMIRANO, 2013, p. 48).

A Marx os intelectuais não lhe despertaram maiores interesses, no prólogo de A ideologia alemã­ — escrito com Engels entre 1845 e 1846 — fez alusão a estes ironicamente indicando que “um homem perspicaz se pôs uma vez a pensar que os homens afundavam na água e se afogavam simplesmente porque se deixavam levar pela ideia da gravidade”. Não obstante, marxistas como Karl Kautsky e Antônio Gramsci, entre outros, abordaram extensamente o tema. Para Gramsci o conceito de intelectual orgânico — definido pelo lugar e a função que ocupa no seio de uma estrutura social — é parte de seus conceitos centrais e definidor do seu pensamento. É assim que o fundador do Partido Comunista Italiano considerará que uma nova cultura emancipatória não se pode formar sem uma contra-hegemonia, identificando os intelectuais no centro da cena política como um grupo social que estende essa tarefa ao conjunto.

Os intelectuais são os “empregados” dos grupos dominantes para o exercício de funções subalternas da hegemonia social e do governo político, a saber: 1) do “consenso” espontâneo que as massas da população dão a direção imposta à vida social pelo grupo social dominante, consenso que historicamente nasce do prestígio (e, portanto da confiança) retido pelo grupo dominante, de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho da coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina daqueles grupos que não ‘consentem’ nem ativa nem passivamente, mas que estão preparados por toda a sociedade em previsão dos momentos de crise no comando e na direção, casos em que o consenso espontâneo menos importa (GRAMSCI, 2004, p. 127).

Então Gramsci entende que o trabalho do intelectual é a justificação ideológica da superestrutura político-ideológica existente, o qual evidentemente se faz em benefício do predomínio social da classe dominante. Mas o intelectual pode optar pelo compromisso com os mais desfavorecidos, ainda que venha de uma classe superior — diz Gramsci –, estabelecendo sua crítica em benefícios das classes dominadas e trabalhando como “intelectual orgânico” para elas, o que inclui a perda do seu conceito de classe.

Das três formas históricas de “intelectual orgânico” que reconhece Gramsci, (clero nas sociedades feudais, intelectual liberal no mundo burguês e intelectual a serviço do partido revolucionário como expressão do movimento operário), é a de traidor a sua classe com a que mais gosta de identificar a intelectualidade em voga na América Latina. A parte do pensamento latino-americano que gosta de se considerar intelligentsia esqueceu a essência dessa intelectualidade rebelde, autônoma e crítica que deu origem a espaços de pensamento construídos desde a racionalidade para questionar o poder, passando a exercer suas funções no âmbito da legitimação. Estes “intelectuais orgânicos” de hoje advogam em longos e, muitas vezes, tediosos textos compostos por um mosaico de fragmentos ideológicos — em muitas ocasiões desconexos — pela “revolução”, o “socialismo” e a “pátria grande” sob uma redobrada fé em presidentes e outras lideranças institucionais.

Ainda que a figura do intelectual orgânico tenha perdido seu sentido, esta intelectualidade latino-americana afim aos novos governos — sob um pretendido desenvolvimento contemporâneo do pensamento crítico — voltou a entender a política como alago vinculado à gestão do poder. Assim, a dominação, considerada pelo filósofo francês Jacques Rancière como mera administração das partes nominalmente reconhecidas, volta a ficar associada ao conceito foucaultiano de polícia. Para um pensamento político delimitado pelo sistêmico, não há espaço para o setor social que não se sinta representado. Desde o pensamento binário, isso é um fator que desune.

A partir do século XVII, vai-se começar a chamar “polícia” ao conjunto dos meios pelos quais se pode fazer crescer as forças do Estado mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desde Estado. Isto é, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que vai permitir estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre ordem interior e Estado e o crescimento de duas forças (FOUCAULT, 2011, p. 320).

Foi banal, para não dizer irrisório, a pretendida tentativa de desenvolver um “pensamento crítico orgânico” latino-americano, funcional ao poder institucional dos governos progressistas da região. O fracasso de tal tentativa se relaciona com suas próprias contrações: a) não pode existir um pensamento crítico que não seja ancorado na célebre proposta de Pierre Vilar de pensamento historicamente (VEGA, 2012) e, portanto, questionar a imposta aceitação de que sempre existiu e existirá capitalismo, motivo pelo qual o campo do jogo fica reduzido a tratar de “humaniza-lo” (o pensamento crítico é um é um pensamento radicalmente anticapitalista); b) o pensamento crítico é um pensamento radical e aberto, o qual não permite espaços de sedução com o poder, o faz desde uma reflexão muito mais ampla que a ortodoxia marxista (incorpora o anarquismo, o ecologismo, o feminismo, o indigenismo…); c) o pensamento crítico é um pensamento anticolonialista e se pretende como superador do conceito eurocêntrico de progresso e todo o seu cortejo de morte e destruição (VEGA, 2012); d) o pensamento crítico é comprometido e não meramente contemplativo, está embarcado na ação política e por isso é reprimido, perseguido e depreciado pelos espaços de poder; e) o pensamento crítico não se pavoneia ante o espelho e nem se beneficia materialmente de conjuntura política alguma, o que implica que consciente de que o bussiness acadêmico implica anular o critério artreano de que a universidade existe para pessoas pareces de duvidar, entende que o pensamento crítico se constrói muito além dos espaços universitários e debates entre as elites acadêmicas.

Acreditamos que estamos assistindo ao final de uma geração de intelectuais e, provavelmente, da função mesmo do intelectual. Em parte, porque deixaram de ser pensadores críticos, mas também porque se distanciaram da vida real, dos movimentos, da gente comum a que deveriam servir. Neste ponto, o ocaso dos intelectuais como profissionais do pensamento é uma boa notícia, já que libera o pensamento crítico de duas ataduras que o converteram em pensamento dócil e cansativo: a questão material e o individualismo, estreitamente ligado ao eurocentrismo.

O primeiro é o tema que propõe Alberto Flores Galindo seu Testamento (1989), quando argumentou que a separação entre ética e apolítica levou a incorporação de toda uma camada de intelectuais à ordem estabelecida. “Enquanto o país empobrecia de forma dramática, na esquerda melhorávamos nossas condições de vida”, já que o trabalho em fundações e ONGs levou essa geração a que “termináramos absorvidos pelo mais vulgar determinismo econômico” (FLORES GALINDO, 1989). É um texto crítico e, portanto, autocrítico.

Boa parte dos profissionais do pensamento de hoje vive na abundância material, abusando dos benefícios que outorga a academia, o que lhes permite possuir casas luxuosas, servidos por empregadas domésticas, praticando formas de vida próprias da burguesia. Fazem o que seja para manter esse status, o que em seus escritos se faz visível quando “esquecem” os protagonismos populares que fizeram possível o ciclo progressista, e somente consideram o papel dos dirigentes que, em sintonia com toda a tradução do pensamento crítico, devemos considerar que desempenham um papel secundário nas lutas de emancipação.

A segunda questão é que esse tipo de intelectuais individualistas e eurocêntricos já não é necessário. Mais ainda, é uma rêmora, um peso inerente para os movimentos antissistêmicos. Podemos concordar com Arturo Escobar: e “o pensamento crítico latino-americano é mais vibrante que nunca” (ESCOBAR, 2016), mas com condições de situá-lo em outros espaços e tempos, de mão dada com outros atores. É um pensamento coletivo que merge nas mingas (mutirão), nas festas comunitárias, nas cozinhas comuns, nos territórios das periferias urbanas, nos mercados populares e durante levantamentos indígenas, camponeses e negros que salpicam no continente. Ou seja, em todo aquele espaço-território onde os de abaixo reproduzem a vida e resistem à morte.

É a esses pensamentos/territórios que devemos. Muito frequentemente eles vêm formulados por pensadores comunitários, com sobrenomes que não se pronunciam nas academias, mas povoam os prontuários policiais. Hugo Blanco, Luis Macas, Máxima Acuña, Patrícia Troncoso, subcomandante insurgente Moisés, Amancay Diana Sacayán, Lorenzo Muelas, Hamilton Borges, Oscar Olivera, são alguns nomes de referências do novo pensamento coletivo, rebelde e anticapitalista porque encarnam seus povos. Em diante, será com eles e elas, em suas comunidades e palenques; não mais com aqueles que flaam bonito, mas frequentam os gabinetes do poder.

Esta é outra das aprendizagens que nos deixa a década progressista.

Referências

ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales. Buenos Aires: Siglo XXI, 2013.

ESCOBAR, Arturo. Desde abajo, por la izquirda e com la Tierra, 17 de jan. 2016.

FLORES GALINDO, Alberto. Testamento. Sur, Lima, 14 dez. 1989.

FOUCAULT, Michel. Seguridad, territorios, población. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011.

GRAMSCI, Antonio. Los intelectualres y lá organización de la cultura. Buenos Aires: Nueva Visión, 2004.

VEGA, Renán. Elogio del pensamento critico. Leitura no evento em defense del pensamento critic, 9 mai. 2012.

* Raúl Zibechi é um jornalista e militante social uruguaio. Decio Machado é pesquisador associado aos Sistemas Integrados de Análisis Socioeconómicos, diretor da fundação Alternativas Latinoamericanas de Desarollo Humano y Estudios Antropológicos (ALDHEA).

** Fragmento do livro Os Limites do Progressismo: sobre a impossibilidade de mudar o mundo de cima para baixo de Raúl Zibechi e Decio Machado publicado no Brasil pela Editora Consequência em 2017.

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