JACAREZINHO E O NARCOESTADO, POR ARTHUR MOURA

O Estado, como forma política do capital, tem como pressuposto fundamental defender os interesses das classes dominantes e suas classes auxiliares.

Base Mao
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6 min readMay 11, 2021

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Foto: Ricardo Moraes

Sempre quando ocorrem fatos muito importantes, é necessário que nos coloquemos, pois, ainda que haja limites em nossas reflexões produzidas no calor do momento, não são conclusões definitivas que queremos chegar, mas sim nos posicionar no campo social. Sem dúvida alguma é o caso do morticínio produzido pelo Estado burguês no Jacarezinho no Rio de Janeiro no dia 5 de maio desse ano.

De uma forma geral há dois blocos, digamos assim, na interpretação do ocorrido:

1) Foi uma ação necessária e bem sucedida, apesar da vida perdida do policial, o que demonstra o perigo de tais situações até mesmo para a polícia. O Estado agiu com força porque não se combate bandidos com flores. E nesse caso notadamente a esquerda tem mais preocupação com os bandidos e não com os heróis da sociedade.

2) A polícia agiu de forma ilegítima e criminosa transgredindo drasticamente o Estado democrático de direito. O Estado, portanto, deve algum reconhecimento de sua falha aos familiares dos assassinados. A partir disso, devemos urgentemente pensar uma possível reformulação das forças armadas, já que até mesmo a justiça se ajustou às necessidades prementes e o STF proibiu operações dessa magnitude nas favelas no período da pandemia. É preciso evitar a completa degradação da república que vem sendo corroída.

Apesar da alternativa “1” ser bastante usual e descabida para a maioria de nós, é comum e é ela que dá legitimidade a tais operações. No entanto, compreendemos que essa é uma alternativa completamente falsa e que responde, em última instância, aos interesses das classes dominantes e seus apoiadores. Invadir o Jacarezinho a essa altura do campeonato em que temos toda uma disputa naquele território envolvendo, sobretudo a milícia, é ignorar um importante fator. Aliás, a partir do inicio dos anos 2000 as milícias começam a ganhar força; produzir uma análise ignorando este fator fica faltando um dos seus principais alicerces. A alternativa “1” é reproduzida por:

  • Policiais e forças armadas de uma forma geral
  • Empresários, patrões e capitalistas
  • Políticos de direita e extrema-direita
  • Trabalhadores sem consciência de classe
  • Mídia burguesa
  • Conservadores de uma forma geral

A alternativa “1” não trabalha com nenhuma base teórica crítica, separando a sociedade entre bons e maus, policiais e bandidos, ancorando-se numa ideia bastante abstrata sobre combate à criminalidade, já que de uma forma geral, este público não condena toda e qualquer criminalidade. Ela apenas escolhe quem pode ser criminoso. Eles defendem uma espécie de monopólio da delinquência e da criminalidade. Quem nesse caso está apto a exercer o crime são as milícias do Estado, que na verdade é o Estado sem uniforme. Mas um Estado ainda mais duro e perverso. Um Estado altamente egoísta no que diz respeito ao monopólio não só do uso da força e criminalidade, mas em todo ordenamento social. Isso, entre outros motivos, é o resultado da crise estrutural do capitalismo. A alternativa “1” critica a alternativa “2” usando como base os seus preceitos morais abandonando a história. A alternativa “1” é surda ao passo que é bastante estridente e enxerga o mundo com um olho só. Ela é uma espécie de ciclope com alto grau de miopia e astigmatismo. Mas ela é importante e eficiente na dominação de classe, pois aqueles que não são convencidos pela base moral o são por meio da força bruta, pois é ela que está sendo clamada. E, por fim, a alternativa “1” tem um representante no alto escalão do Estado: Jair Bolsonaro. Um criminoso envolvido com milícias de forma comprovada e pública que reivindica para si o monopólio do crime. Para se esquivar de tal responsabilidade, o presidente usa sempre a ameaça do uso da força bruta que quase nunca tem falhado ou ficado somente nos limites da mera ameaça.

Agora pensemos a alternativa “2” que nos serve também como um bom termômetro. Temos agora democratas, social democratas e liberais denunciando uma completa decadência e corrosão do Estado democrático de direito e da república como falam aos quatro cantos comentaristas políticos, jornalistas, intelectuais, etc. Se por um lado fazem a denúncia, buscam de todas as formas ressuscitar o cachorro morto sem se dar conta que o Estado está agindo tal qual lhe é prescrito. Ou seja, é preferível a crise econômica à tomada de consciência da classe trabalhadora. O morticínio está acontecendo de uma forma geral e o Jacarezinho foi apenas uma radicalização dos métodos de genocídio. A prática da violência vem sendo testada e na medida em que a população aceita, as doses vão aumentando até produzir o completo colapso do próprio sistema, que percebendo este processo vem modificando a sua própria morfologia em narcoestado. Isso quer dizer que, o Estado tomou para si a responsabilidade dessas atividades criminosas e ilegais apenas assumindo publicamente os seus interesses, estando estes ainda em processo de legitimação. O Estado não pode combater essa anomalia porque ele próprio é a anomalia. Ele é o câncer desenvolvido. Buscar, portanto, explicar a decadência ou simplesmente a invalidação ou quebra da normalidade jurídica é ficar na metade do caminho, o que é ruim, pois você não está em lugar algum: nem lá, nem cá. Além do mais, a legalidade em territórios como o Jacarezinho é absolutamente outra. É a legalidade do terror, da falta do básico para se viver dignamente, da falta de respeito, da criminalização histórica de sua população, enfim, comprovando que há uma distância com relação aos setores médios e mais abastados e é exatamente assim que funciona na sociedade capitalista. Há uma gritante diferença entre as classes sociais, gerando com isso eternos confrontos, quase sempre na verdade massacres, contra os mais vulneráveis. Essa interpretação (“2”) não a toa chora todas as mortes (reproduzindo o lema “todas as vidas importam”) tanto de policiais como de bandidos, dizendo que se a polícia não age assim nos territórios ricos é porque falta preparo e inteligência ao Estado, o que comprovaria mais uma vez a decadência do Estado e sua despreocupação com as vidas dos favelados. Os porta-vozes da alternativa “2” são:

  • Organismos de direito humanos
  • OAB e demais repartições republicanas e legalistas
  • Artistas, políticos e intelectuais progressistas
  • Partidos políticos de esquerda e demais organizações burocráticas

A opção “2” na medida em que não promove, nem a contextualização geral do fato ocorrido, nem tampouco bebe de uma orientação crítica ao capitalismo, funciona como um complemento da leitura “1” sobre a realidade socioeconômica, ainda que aparentemente discorde dela. As duas opções (“1” e “2”) disputam no mercado das interpretações objetivos idênticos: continuar o morticínio, mas com métodos próprios. Não a toa, ambos reivindicam a lei, o nacionalismo e a ordem social e ambos estão preocupados com o bem-estar geral. Ambos também estão focados nas disputas eleitorais como meio privilegiado de se combater os desvios da sociedade. Nesse ponto a opção “1” tem o plus de reivindicar o golpe de Estado, caso as eleições não resolvam, levando a defesa dos seus interesses até as últimas consequências, o que nem de longe passa pela cabeça dos legalistas, democratas e reformistas. Estes têm fé no Estado democrático defendendo essa ideia de forma religiosa e ortodoxa rejeitando a radicalidade associando esse comportamento aos autoritarismos de extrema-direita, mesquinha e golpista. Se pudéssemos imaginar um gráfico é como se a opção “2” não extrapolasse os limites demarcados pelo Estado e a opção “1” tivesse um comportamento pendular mostrando evidentes desvios éticos.

Pensemos, por fim, uma terceira linha de interpretação que chamaremos de alternativa “3” que assim podemos definir:

3) A polícia e a justiça não sofrem nenhum desvio de conduta. Pelo contrário. Ambos cumprem com a sua função social no sistema capitalista. O Estado, como forma política do capital, tem como pressuposto fundamental defender os interesses das classes dominantes e suas classes auxiliares. O controle social, a criminalização de um, sem número de atividades, assim como a manutenção das diferenças sociais, é o que povoa o hall do comportamento estatal historicamente. As forças armadas nesse caso estão apenas cumprindo com o seu papel com o agravante de trazer para si outras atividades lucrativas, engordando ainda mais essa estrutura. Em última instância, numa sociedade dividida em classes com interesses antagônicos, cabe ao Estado aparar os excessos como forma de conter para melhor controlar. Não cabe à justiça do Estado, portanto, promover a justiça, mas sim fundamentar a dominação de classe; assim como não cabe à polícia defender o interesse geral, mas sim por em prática tal plano de dominação.

Arthur Moura é Cineasta, graduado em História pela UFF e mestre em Educação pela UERJ.

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