MARGEM

Mauricio Braga
Base Mao

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O rio está calmo hoje. Estranho. Desde que fomos jogados aqui ele se manteve agitado, arrastando tudo que encontrava pelas margens. Não fosse a febre que me esmorece, tentaria pescar de algum modo.

Não consigo lembrar quando comi um peixe pela última vez. Tampouco consigo lembrar há quanto tempo estou aqui com os outros condenados. Nessa selva o tempo foi abolido. Não há dias ou horas, só uma sucessão de sóis e luas. Por vezes esses astros nem sequer aparecem, ficam cobertos por nuvens que despejam dilúvios. Pobre de nós, expulsos tanto geográfica quanto cronologicamente.

Apesar de tantos infortúnios, não me arrependo. Faria novamente, se tivesse oportunidade, o motim que me trouxe para cá. Com mais cautela, evidentemente. Meu único erro foi confiar demais em meus companheiros. Julgava-me em um Potemkin, sem saber que por dentro de suas couraças havia traidores.

Agora o que me resta é ficar à beira desse rio, na esperança de que surja uma embarcação para nos resgatar. Vã esperança. Ninguém duvida que esse rio, por maior que seja, é só mais um dos milhares de braços fluviais da região, bem longe de qualquer rota. Mesmo assim o contemplo. É o que me resta. Futuro não há, passado também não. Tento puxar algo da memória mas é um esforço inútil. Ora tenho a impressão de que já tive mulher e filhos, ora parece que nasci nessa selva. Deliro. Penso no motim, sem conseguir discernir se foi sonho ou realidade. Consulto um companheiro menos confuso. Ele diz que me avisou das prisões na Amazônia, cuja existência eu então negava, acreditando se tratarem de lendas criadas para nos assustar. Pois bem, cá estamos. Diz também que outrora essas prisões eram campos de concentração, onde havia torturas e trabalhos forçados, porém agora os presos eram apenas abandonados nessa região. Talvez nossos algozes tenham constatado o obvio: as prisões na selva não precisam de grades, nem de carcereiros. Além de ser menos dispendioso o simples abandono. Digo ao outro que as torturas não acabaram; os torturadores apenas mudaram de método. E dentre as inúmeras formas de matar um homem, o descaso não é o menos cruel.

Esqueço ele. Fixo novamente minha atenção no rio. Tão tranquilo, tão ameaçador. Calmaria por aqui nunca significa paz. Por isso, ao invés de me tranquilizar, me inquieto. Tenho certeza que é mau presságio. E que não tardará até eu me amalgamar de vez com esta terra, tornando-me, ao expirar, parte do seu húmus.

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