O QUE É MAIS-VALIA? [Parte 3]

Gabriel Silva
Base Mao
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11 min readApr 30, 2021

3. A Mais-Valia Relativa [Parte 3]

Vimos no tópico anterior que a mais-valia absoluta consiste na extensão da jornada de trabalho, mas em que consistiria, então, a mais-valia relativa? Vamos começar essa exposição com uma definição dada pelo próprio Marx em O Capital.

(…) a mais-valia que (…), decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa (MARX, 1985, p. 432).

Observamos na análise da mais-valia absoluta que o capitalista pode estender a jornada de trabalho tanto quanto for possível, extrapolando até os limites considerados morais pela sociedade em geral. No entanto, também observamos que a luta dos trabalhadores pressiona o Estado a regular essa jornada de trabalho por meio de normas legais, ao mesmo tempo que esses essas jornadas de trabalho muito extensas vão prejudicando a própria produção capitalista como um todo, visto que o trabalhador volta ao trabalho cada vez mais estafado e com um tempo de vida obviamente mais curto.

Deste modo, ao alcançar um dado limite da jornada de trabalho como o capitalista faria para aumentar sua extração de mais-valia? É claro que se há uma norma legal, por exemplo, que limita essa jornada a, digamos, 10 horas de trabalho, ele não pode estender essa jornada de trabalho, e assim utilizar-se do expediente da mais-valia absoluta, sem o pagamento de certas horas extras[5]; isso quer dizer que o capitalista tem que utilizar outro estratagema para extrair mais-valia. Vamos utilizar um exemplo para simplificar o entendimento.

A)

______/_________________________________
2 horas 8 horas (Mais-valia)

B)

__/_________________________________
1 hora 9 horas (Mais-valia)

O leitor pode observar que no exemplo (A) a jornada de trabalho de 10 horas está dividida entre 2 horas de reposição do valor da força de trabalho e 8 horas de mais-trabalho, tempo em que o capitalista extrai a sua mais-valia; já no exemplo (B) observamos que a jornada de trabalho se mantém exatamente nas mesmas 10 horas, mas a proporção entre o tempo para a reposição do valor da força de trabalho e o tempo de mais-trabalho, de onde o capitalista extrai a mais-valia, mudou notavelmente. Como isso se procede? Os capitalistas, ao investirem no incremento das forças produtivas — em máquinas, aplicação da ciências da natureza, conhecimento humano em geral, aperfeiçoamento de sua força de trabalho, etc. — acabam por produzir as suas mercadorias em um tempo de trabalho socialmente menor, o que invariavelmente conduz à diminuição do valor das mercadorias. Ora, o que já explicamos nesse escrito é que o valor da força de trabalho é formado sobretudo pelo valor das mercadorias que servem à sua manutenção diária, logo é evidentemente que ao abaixar o valor dessas mercadorias [6] os capitalistas acabam por abaixar o valor da própria força de trabalho [7], que é reproduzida em um tempo menor da jornada de trabalho, o que permite que o capitalista aumente o tempo de mais-trabalho e, assim, a sua extração de mais-valia. Deste modo, as constantes revoluções industriais e aperfeiçoamentos tecnológicos do capitalismo estão alicerçadas na busca incessante do barateamento das mercadorias que compõe o valor da força de trabalho e, assim, na alteração da proporção da jornada de trabalho para a produção da mais-valia; esse é o expediente da mais-valia relativa.

Entendemos aqui por aumento da força produtiva do trabalho em geral uma alteração no processo de trabalho, pela qual se reduz o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria, que um menor quantum de trabalho adquira portanto a força para produzir um maior quantum de valor de uso.587 Enquanto pois na produção da mais-valia, na forma até aqui considerada, o modo de produção é suposto como dado, não basta de modo algum, para produzir mais-valia mediante a transformação do trabalho necessário em mais-trabalho, que o capital se apodere do processo de trabalho em sua forma historicamente herdada ou já existente, e apenas alongue sua duração. Tem de revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho, portanto o próprio modo de produção, a fim de aumentar a força produtiva do trabalho, mediante o aumento da força produtiva do trabalho reduzir o valor da força de trabalho, e assim encurtar parte da jornada de trabalho necessária para a reprodução deste valor (MARX, 1985, p. 431)

O que é curioso é que a própria concorrência entre os diferentes capitais os força, inconscientemente, a investir no incremento da força produtiva do trabalho social para diminuírem o valor de suas mercadorias e, assim, conseguirem conquistar uma maior fatia do mercado. Essa disputa provocada pela própria concorrência entre os capitais, acaba levando, também, à produção da mais-valia relativa. Deste modo, a consciência ou inconsciência do capitalista individual sobre a existência da mais-valia relativa é desimportante para a análise do fenômeno.

A mercadoria mais barata diminui naturalmente o valor da força de trabalho apenas pro tanto, isto é, na proporção em que entra na reprodução da força de trabalho. Camisas, por exemplo, são meios de subsistência necessários, mas só um entre muitos. Seu barateamento diminui apenas a despesa do trabalhador com camisas. A totalidade dos meios de subsistência compõe-se, porém, de diferentes mercadorias, todos produtos de indústrias particulares, e o valor de cada uma dessas mercadorias constitui uma parte alíquota do valor da força de trabalho. Esse valor diminui com o tempo de trabalho necessário à sua reprodução, cuja redução total é igual à soma de suas reduções em todos aqueles ramos de produção particulares. Tratamos esse resultado geral aqui como se fosse resultado direto e fim direto em cada caso individual. Quando um capitalista individual mediante o aumento da força produtiva do trabalho barateia, por exemplo, camisas, não lhe aparece necessariamente como objetivo reduzir o valor da força de trabalho e, com isso, o tempo de trabalho necessário pro tanto, mas na medida em que, por fim, contribui para esse resultado, contribuirá para elevar a taxa geral de mais-valia. As tendências gerais e necessárias do capital devem ser diferenciadas de suas formas de manifestação. O modo como as leis imanentes da produção capitalista aparecem no movimento externo dos capitais, como se impõem como leis coercitivas da concorrência e assim surgem na consciência do capitalista individual como motivos impulsionadores não é para ser apreciado agora, mas esclareçamos de antemão: uma análise científica da concorrência só é possível depois de se compreender a natureza interna do capital, do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes somente é compreensível para quem conhece seu movimento real, embora imperceptível aos sentidos (MARX, 1986, p. 431-433)

É esse constante incremento das forças produtivas que também ajuda a especificar o capitalismo e o torna diferente dos modos de produção anteriores [8] que também se baseavam na exploração de uma classe pela outra e na existência do mais-trabalho [9]. Marx já havia notado, já em sua juventude, essa necessidade premente de constante incremento das forças produtivas que existe no modo de produção capitalista que havia construído em poucas décadas coisas que a humanidade havia levado séculos, isso pode ser lido em o Manifesto Comunista, que o autor de O Capital redigiu junto com Engels. A sociedade burguesa é regida, então, por constantes abalos e por um sentimento permanente de instabilidade.

A burguesia revelou como a brutal demonstração de força da Idade Média, que a reação tanto admira, encontra seu complemento natural na mais inerte ociosidade. Primeiro, ela demonstrou o que a atividade humana pode realizar. Construiu maravilhas maiores que as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas. Conduziu expedições que tiram o brilho das grandes migrações e das cruzadas. A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, e por conseguinte todas as relações sociais. A conservação inalterada dos antigos modos de produção era a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A transformação contínua da produção, o abalo incessante de todo o sistema social, a insegurança e o movimento permanentes distinguem a época burguesa de todas as demais. As relações rígidas e enferrujadas, com suas representações e concepções tradicionais, são dissolvidas, e as mais recentes tornam-se antiquadas antes que se consolidem. Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas. (MARX, 2008, p. 15-16)

Ao longo da seção destinada à análise da mais-valia relativa Marx vai destrinchando os mecanismos utilizados por essa modalidade de extração da mais-valia, que vão desde à cooperação até ao surgimento da maquinaria, coisa que não nos é facultado tratar aqui. Por fim, é pertinente retomar o conceito de mais-valia relativa antes de passarmos ao tópico final deste escrito: a mais-valia relativa, ipsis litteris, é a mudança de proporção da jornada de trabalho entre o tempo de trabalho necessário à reprodução do valor da força de trabalho e o mais-trabalho, de onde o capitalista extrai a mais-valia; tal mudança de proporção ocorre com o incremento contínuo das forças produtivas e a diminuição das mercadorias que compõem o valor da força de trabalho o que acarreta, necessariamente, no aumento do tempo destinado à produção de mais-valia.

4. Por que os trabalhadores não se revoltam?

Depois de todo este caminho percorrido o leitor pode estar se perguntando: por que, afinal de contas, os trabalhadores não se revoltam e acabam com essa situação? Bem, a questão não é tão simples, o capitalismo é o modo de produção mais engenhoso, ardiloso, sorrateiro, etc. da história da humanidade. Isso porque a exploração capitalista não aparece de modo claro aos trabalhadores, a própria estrutura de suas formas econômicas oculta, esconde e disfarça essa exploração; podemos dar um exemplo utilizando o salário.

Ora, o salário esconde a existência da mais-valia ao mostrar todo trabalho não pago como trabalho pago, isto é, o trabalhador, ao receber o seu salário no fim do mês, acreditar estar recebendo exatamente por aquilo que produziu ao capitalista, ele não consegue perceber que trabalhou um tempo a mais somente para valorizar o capital do patrão, sua visão está embotada porque o salário esconde e disfarça essa exploração. Deste modo, o salário esconde a existência da mais-valia para o trabalhador.

A forma salário extingue, portanto, todo vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho, em trabalho pago e trabalho não pago. Todo trabalho aparece como trabalho pago. Na corveia distinguem-se espacial e temporalmente, de modo perceptível para os sentidos, o trabalho do servo para si mesmo e seu trabalho forçado para o senhor da terra. No trabalho escravo, a parte da jornada de trabalho em que o escravo apenas repõe o valor de seus próprios meios de subsistência, em que, portanto, realmente só trabalho para si mesmo, aparece como trabalho para seu dono. Todo seu trabalho aparece como trabalho não pago.356 No trabalho assalariado, ao contrário, mesmo o mais-trabalho ou trabalho não pago aparece como trabalho pago. Ali a relação de propriedade oculta o trabalho do escravo para si mesmo; aqui a relação de dinheiro oculta o trabalho gratuito do assalariado. (…) Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a verdadeira relação e mostra justamente o contrário dela, repousam todas as concepções jurídicas tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as pequenas mentiras apologéticas da Economia vulgar (MARX, 1985, p. 169)

Com um rápido exemplo, sem adentrar em suas especificidades e complexidades, notamos como a própria estrutura da sociedade capitalista produz formas que embotam uma visão clara acerca do que ele seja, os fenômenos que aparecem em sua superfície escondem determinações essenciais, baseadas na exploração de uma classe pela outra; em nosso tempo, novas formas de exploração como a uberização elevaram esse fetichismo do salário à enésima potência. Os fetichismos da mercadoria, do dinheiro, do capital, do salário, etc. são todos inerentes à produção capitalista de mercadorias e atingem todo o conjunto da sociedade, desde o trabalhador assalariado até o capitalista. É evidente que essa questão merece atenção especial, e em breve nos dedicaremos a explicar o que é o fetichismo e como ele se desdobra até chegar às suas formas mais avançadas, por ora, o que foi exposto acima já dá ao leitor uma ideia de como se processam esses feitiços que o capitalismo lança na visão dos seus agentes econômicos.

Para além disso, há outras questões extremamente complicadas, ligadas à alienação, à ideologia, à tomada de consciência dos trabalhadores, à existência de um aparato militar e de vigilância destinados à dominação de classe, à sensação de igualdade e liberdade promovidas pelo direito burguês, etc. Todas estas questões são impeditivos e complicadores, o que torna a dominação de classe na sociedade capitalista a mais bem sucedida em sua forma, pois o inimigo de classe não aparece como inimigo, as coisas se confundem rapidamente e aparecem embaçadas; em outros modos de produção, baseados na coerção direta de uma classe pela outra, estava claro ao explorado quem era o seu algoz; no capitalismo o algoz está mascarado e escondido.

Não é à toa que Lênin chega à conclusão de que o trabalhador assalariado pode chegar no máximo à consciência sindical, de luta por melhores salários etc., e de que a consciência revolucionária só pode surgir de fora; daí a necessidade de existir um partido organizado destinado a fazer esse trabalho. Obviamente que essa questão da organização dos trabalhadores, da sua tomada de consciência, etc. nunca esteve tão na ordem do dia.

Antes de terminarmos, é importante reforçar que a mais-valia não é produzida somente pelo operário fabril — o expediente utilizado por nós no começo deste texto teve fins didáticos — muito pelo contrário, a produção de mais-valia está generalizada nos mais diversos setores da sociedade capitalista. Isto quer dizer que boa parte do setor de serviços, do comércio, do setor de transportes e da indústria em geral, do efervescente crescimento do “setor” de aplicativos, etc. produzem todas imensas quantidades de mais-valia diariamente. Toda a nossa sociedade está baseada na extração da mais-valia e no butim generalizado na qual se locupletam o capital industrial, o capital comercial, o capital a juros, etc., sobre essa repartição da mais-valia feita por esses diferentes capitais também nos dedicaremos a escrever um texto específico.

A necessidade de retomar discussões e conceitos tão caros do marxismo em um momento de grave crise sanitária e de crise capitalista é fundamental. A tarefa geracional para os marxistas de nosso tempo é de recuperar a consciência e o nível de organização dos trabalhadores, trabalhar incansavelmente para que o marxismo se torne, novamente, hegemônico entre as organizações de trabalhadores; trazer os clássicos conceitos do marxismo de volta para o campo da discussão e da análise da esquerda manauara é o primeiro passo. A montanha que temos que escalar é gigante, mas não vamos chegar ao seu cume se não começarmos a escalar agora.

Notas

[5] Sobre as horas extras, Marx faz apontamentos importantes em O Capital, mas nos é impossível tratar da questão com profundidade agora, talvez em outro escrito possamos tratar do tema com maior paciência.

[6] O leitor pode ter notado que ora falamos de valor, ora falamos de preço. Bem, estamos supondo que os dois são a mesma coisa, para facilitar a exposição e a explicação dada por nós; no entanto valor e preço não são a mesma coisa e o preço, na realidade do mundo capitalista, constantemente se desvia do seu valor, além de que há mercadorias que podem possuir preço mas nenhum valor, como a terra nua, por exemplo.

[7] Em nosso país os capitalistas pagam muito abaixo desse valor da força de trabalho, o que pode ser facilmente observado pelos cálculos de salário necessário fornecidos pelo DIEESE todos anos. Essa exploração exacerbada da força de trabalho denota uma clara superexploração da força de trabalho em terras tupiniquins

[8] Podemos definir modo de produção como o conjunto das relações de produção, que ancoram uma determinada forma de propriedade, e o conjunto das forças produtivas de uma determinada formação social.

[9] O mais-trabalho existiu em todos os modos de produção baseados na existência da exploração de uma classe pela outra, mas é só no capitalismo que essa mais-trabalho se torna meio pelo qual se pode extrair mais-valia. Esses outros modos de produção baseados na existência do mais-trabalho estavam baseados, sobretudo, na apropriação in natura do produto do trabalho das classes exploradas, na separação espacial entre trabalho necessário e mais trabalho, etc.

Referências:

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.1. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

______. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.2. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

______. Para a Crítica da Economia Política: Manuscrito de 1861–1863. Cadernos I a V: Terceiro Capítulo — O Capital em geral. Autêntica, São Paulo, 2011.

______; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Expressão Popular, São Paulo, 2011.

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