A Unidade Babilônica da Igreja

por Toby Sumpter

Leonardo Daneu Lopes
Basileia
7 min readFeb 9, 2019

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Há muitas razões legítimas para se lamentar o estado dividido da Igreja. Orgulho carnal, arrogância teológica, rivalidades sectárias, são, cada uma em sua própria forma, versões modernas da heresia dos Gálatas, a recusa em partilhar a mesa com irmãos e irmãs por quem Cristo morreu. E denominações têm frequentemente desempenhado o mesmo papel que os nomes Paulo e Apolo em Corinto, pelo que nos juntamos no manifesto de Paulo em não saber nada a não ser Cristo e Este crucificado.

No entanto, enquanto oramos pela unidade do Corpo de Cristo, enquanto lutamos para sermos um como o Pai, Filho e Espírito Santo são, devemos ter a mesma atenção para os perigos de certas formas de unidade. Parece que há um demônio romântico espreitando os filhos de Adão, e digo de uma forma etimológica bem grosseira: há um amor idólatra à Roma e suas maneiras que parece muitas vezes espreitar discussões sobre catolicidade. E não me refiro somente à Igreja Católica Romana, mas a algo mais sutil, mais antigo, mais pervasivo na natureza humana. Fazemos bem ao lembrar que Roma era a última das grandes bestas que Daniel viu sair do mar, uma forma de se exercer poder, um estilo de consolidação, uma promessa de unidade que remonta à Babel que Jesus veio desfazer.

Na verdade, a Bíblia abre com o empolgante poema da criação, e envolto nisso tudo está a beleza da divisão: Deus separou a luz das trevas, as águas de cima das águas de baixo, e os mares da terra seca. Esta divisão está diretamente ligada à nomeação pelo próprio Deus. Ele divide e nomeia, divide e nomeia. Podemos certamente dizer que Deus denomina. Deus inventou boas denominações quando dividiu “luz” e “escuridão” e os nomeou Dia e Noite e os declarou bons. É claro que neste mundo recém nascido, essas divisões eram parte da glória, partes diferentes que cantavam em harmonia.

Finalmente, na surpreendente interrupção do “é bom”, Deus declara que a solidão do homem “não é boa” e o quebra no meio. Ele põe Adão num estado quase de sono de morte e tira dele uma das costelas. E deste osso foi feita a mulher, a glória do homem, e ela foi levada ao homem e eles se tornaram uma só carne.

Tudo isso é relevante para a nossa eclesiologia. O apóstolo Paulo nos diz que este padrão é essencial para entender o que Deus está fazendo com a Igreja (Ef 5:31–32). O casamento é um mistério profundo, mas Paulo pensava principalmente em Cristo e Sua Igreja. Paulo nos exorta a estudar a narrativa da criação para entender o que Jesus planeja no mistério da Igreja. E o que vemos conforme estudamos a origem do universo é o quão essenciais são as divisões para o tipo de unidade que Deus ama. Do mesmo modo, também vemos que há um certo tipo de unidade que Deus odeia. E esse tipo de unidade quase sempre está disfarçada em uma forma conservadora. É quase sempre uma reação à desunidade pecaminosa.

Vemos isso nos primeiros capítulos de Gênesis depois da queda. Depois da expulsão do homem do jardim, Caim mata seu irmão, e bem na hora, surge uma unidade pecaminosa quando os filhos de Deus começam a se casar com as filhas dos homens (Gn 6). O ápice da criação é o casamento do primeiro homem com a primeira mulher. É esse tipo de unidade que Deus deseja, uma unidade que não destrói diferenças, mas que de alguma forma se pauta em boas diferenças, diferenças dadas por Deus. Se trata da celebração dessas diferenças numa harmonia ordenada.

Quando nos deparamos com esses casamento pecaminosos, devemos da mesma forma assumir que há uma lição eclesiológica para nós. Unidade não é um bem automático, e os cristãos devem estar atentos às seduções de uniões nocivas. Não é meramente uma possibilidade de contos de fada. Unidade é o nome de uma das filhas do homem, uma mulher barulhenta e impura que leva muitos homens ao inferno.

Da mesma forma, mesmo depois do dilúvio, o impulso de homens pecaminosos é construir uma cidade e uma torre capaz de criar e preservar um certo tipo de unidade. Este é o original cativeiro babilônico da humanidade — um cativeiro de unidade. Mas Deus chamou Adão e Eva e seus descendentes para encher a terra. Ele estabeleceu uma ordem do homem “deixar seu pai e mãe e se unir à sua esposa”. Deus encheu este mundo com tantas glórias que é essencial que as pessoas se espalhem, se movam, se dividam, saiam — com o propósito de explorar, descobrir, e chegar ao tipo de glória e unidade que Ele tem em mente.

Vemos algo similar no nascimento da Igreja que é cantado à existência pelo mesmo Espírito que pairava sobre as águas no princípio. É impressionante que o Espírito se deleite em começar a transformação do mundo através de violentas divisões entre os apóstolos e os líderes religiosos, pelo assassinato de um irmão (Estêvão), e a dispersão dos discípulos por todo o mundo conhecido.

Muitos já notaram que o Pentecoste é uma reversão de Babel, mas será que temos considerado as ramificações eclesiológicas desta reversão? Jesus está determinado a dispersar seus discípulos, e essa dispersão é algo bom. Pode parecer uma eclesiologia fracassada. Como eles poderão ser um como Jesus é um com o Pai? Eles vão acabar em lugares diferentes, falando línguas diferentes, com variadas práticas litúrgicas e declarações doutrinárias. Eles podem se desentender. E como os mais honestos eruditos patrísticos notariam, foi exatamente o que aconteceu.

Para se ter certeza, houve pecados de apostasia, heresia, orgulho e cisma que de fato infectaram várias porções da Igreja. Mas o que encontramos marchando através dos séculos é uma crescente e gloriosa catolicidade. Mas esta catolicidade bíblica não é uma unidade babilônica. Levando em conta a explosão do monasticismo, evangelismo, e missões em muitos países, a realidade palpável era muito mais próxima de uma vaga confederação, discípulos dispersados falando diferentes línguas, mas todos capacitados e unidos pelo mesmo Espírito Santo, tendo um Senhor, uma Fé, um Batismo, uma Mesa. Pode-se dizer que foi só quando papas do século XII ou XIII começaram a insistir num certo estilo imperial de unidade que a designação irônica de “Romana” no catolicismo veio a existir.

No recente livro de Rodney Stark “How the West Won” (Como o Ocidente Venceu), ele escreve: “A queda de Roma foi, de fato, o evento mais benéfico no surgimento da civilização ocidental, justamente porque permitiu muitas mudanças substanciais e progressivas” (pág 69). Ele continua com um breve hino às bênçãos da desunidade: “A desunidade permitiu extensas experimentações sociais de pequena escala e desencadeou criatividade competitiva dentre centenas de unidades políticas independentes, que, por sua vez resultou em rápido e profundo progresso” (pág 69).

A análise cultural ampla de Stark corresponde ao que o instinto cristão deve ser também na igreja. De fato, parte do ensinamento bíblico parece sugerir que em alguns casos cristãos podem ser bem mais esperançosos e otimistas em relação à proliferação de denominações. Certamente devemos lamentar divisões carnais cheias do veneno da acusação demoníaca, inveja, ganância, beligerância, e ambições e competições egoístas. Mas talvez o tipo de progresso energético do evangelismo e desenvolvimento doutrinário e formador de cultura que Jesus esteja interessado venha através da bênção de um certo tipo de desunidade, minimizando organização central, burocracia, livros de constituição eclesiástica, e encorajando o tipo de ingenuidade criativa, bagunçada, que enraíza diversidade. Talvez seja precisamente em nossa dispersão e preenchimento da terra que nos tornamos mais prolíficos e unidos.

Enquanto oramos pelo reino vindouro, enquanto oramos para que a Igreja seja uma como o Pai, Filho e Espírito Santo são um, pense e ore sobre como nosso estado atual talvez não esteja tão longe quanto pensamos do tipo de unidade a qual Jesus está nos levando. Babel exige que todos falemos a mesma língua. Babel promete uma glória humanística que é ameaçada por diferenças. Mas esta unidade é quase sempre um retorno à solidão, o que não é bom. O Espírito foi derramado em toda a carne para unir uma nova humanidade que fala em muitas línguas. Deus dispersou Seu povo pela terra, mas Deus dispersa Seu povo para o bem do Seu povo.

Ademais, enquanto verdadeiramente lamentamos nossos pecados contra nossos irmãos que podem ter levado a divisões, não devemos nos esquecer da história de José: o que os homens intentaram para o mal, Deus estava trabalhando para o bem. Neste sentido, podemos dar graças aos resultados do Grande Cisma e da Reforma.

Unidade não é primariamente sobre gráficos de fluxo ou burocracia organizacionais. Uma reunião institucional nem sempre se parece com o arrependimento. Um filho pode sair de casa em rebelião, tomar um esposa e começar uma família, e quando voltar a si certamente deve se reconciliar com seus pais, mas mudar de volta para a casa dos pais também não é a solução. Arrependimento quer dizer aprender a amar um ao outro em novas circunstâncias.

Se usarmos as denominações e as divisões institucionais para reforçar um espírito sectário, como muitos fizeram, não somos melhores que o romanos ou os babilônios: o que temos são pequenos, patéticos impérios. Mas quando igrejas diferentes trabalham juntas, quando pastores de diferentes denominações servem e oram pela cidade juntos, quando partilhamos a Ceia do Senhor juntos, não se trata necessariamente de um passo rumo ao fim das denominações, mas talvez do começo de uma verdadeira harmonia, uma unidade cristã madura que só é possível onde nossas diferenças estão simultaneamente bem definidas. A unidade para a qual Jesus está nos guiando tem muito menos a ver com determinar uma única estrutura organizacional e muito mais a ver com as muitas tribos e línguas trazendo suas respectivas glórias ao Rei.

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