Apocalipse agora?

Thais Cavalar
Basileia
Published in
4 min readMar 29, 2020

Peter J. Leithart

Four Horsemen of the Apocalypse — Viktor Vasnetsov

Seria esse o apocalipse? O coronavírus é o fim?

Em Apocalipse 6, Jesus o Cordeiro abre os sete selos que mantêm o livro selado. Conforme abre os primeiros selos, 4 cavaleiros avançam do céu contra a terra. O primeiro monta em um cavalo branco e vence com seu arco; o segundo está em uma montaria vermelho-sangue e carrega uma espada para tirar a paz da terra; outro cavaleiro monta um cavalo preto segurando uma balança para inflar os preços do trigo e da cevada; o cavaleiro final, Morte, monta um cavalo amarelo e mata com espada, fome, peste e as feras da terra. Alguém que lê o Apocalipse como uma profecia do fim do mundo talvez conclua que o coronavírus sinaliza o advento do quarto cavaleiro e prepara para o Arrebatamento.

Isso, no meu julgamento, é uma má interpretação da visão de João. O livro das revelações profetiza coisas que irão acontecer “logo” depois que João as vê (Ap 1:1, 22:6), e a primeira metade da profecia representa eventos que aconteceram antes de João os escrever. Antes de ver os cavaleiros, João foi recolhido ao céu para testemunhar a liturgia perpétua dos querubins e anciãos (cap. 4). Quando ele vê o livro selado, lamenta que não há alguém para abri-lo, até que o Cordeiro subitamente aparece para receber o livro (cap. 5). Inicialmente o Cordeiro não está no céu, logo depois está. Os leitores deveriam reconhecer essa cena: a ascensão de Jesus. Em uma montanha na Galiléia, João testemunha a volta de Jesus ao Pai; no Apocalipse, João testemunha o mesmo evento do outro lado do firmamento. A visão dos cavaleiros no capítulo 6 retrata a consequência da ascensão: o Espírito, que é o presente Pentecostal. Os quatro cavaleiros simbolizam o impacto devastador de lançar o Espírito de Jesus no mundo. Quando o evangelho conquista, isso causa divisão, esgota os recursos dos que resistem, e devasta quem desafia o Cordeiro. Vivendo no século vinte e um, a vinda dos cavaleiros não está adiante de nós; está no passado.

Isso não responde completamente a questão. Afinal, Deus está disposto a despedaçar mundos quando conspiram contra ele e seu Rei ungido (Sl. 2). Isaías disse que o céu da Babilônia iria desabar (Is. 13–14), e assim foi. Antes da queda de Jerusalém, Jeremias profetizou o mesmo conjunto de calamidades do Apocalipse — fome, espada e peste. (Jr. 14:12, 21:7–9; 24:10; 29:17–18) — e previu que Judá se reverteria a escuridão e “vazio sem forma” do caos anterior à criação (Jr. 4:23; cf. Gen. 1:2). A história continuou por milênios desde Jeremias, mas ele não estava errado. Um mundo realmente acabou quando Nabucodonosor incendiou o templo de Salomão.

Então podemos reformular a questão: seria esse um apocalipse? O coronavírus é um fim, o FDMCNOC (“fim do mundo como nós o conhecemos”)?

É impossível saber, claro. Milhões podem morrer, deixando muitas nações em desordem desesperada. É possível, como R. R. Reno, Peter Hitchens, e outros alertaram, que a reação à pandemia será tão devastadora quanto a doença. Talvez estejamos fazendo muito, ou pouquíssimo. Ninguém sabe. Nós não temos dados suficientes para saber o quão perigosa é a doença em si, muito menos nossas contra-medidas.

Especulações sobre o fim da civilização perdem um ponto chave, de toda forma. Rod Dreher notou em vários artigos recentes que “apocalipse” significa “desvelar”. Quando Deus se aproxima, ele remove as folhas da figueira, nossas defesas e ilusões, e leva coisas ocultas à luz. Nos Estados Unidos e na Europa [e no Brasil], a pandemia pode revelar muitas coisas: a fragilidade do nosso senso de segurança invencível; a frivolidade dos nossos entretenimentos, os riscos da globalização e os riscos de barreiras nacionais intransponíveis; a condição desgastada das nossas relações sociais. Nossa confiança na ciência pode estar abalada — seja por que a modelagem dos especialistas extrapola drasticamente ou por que a ciência não pode nos salvar. O coronavírus talvez coloque um prego no caixão do libertarianismo, convencendo a todos que somente ações coletivas pode nos proteger em tempos de perigo mortal. Isso pode, por outro lado, ser um golpe ao estatismo, se a ação coletiva sair pela culatra.

A principal coisa exposta por qualquer apocalipse é o estado do coração. Deus provou Israel com maná para “saber o que havia em teu coração” (Dt. 8), e Sua palavra penetra através de nós, expondo os pensamentos e propósitos do coração (Hb. 4:12–13). Nós iremos sobreviver a isso, e esse livramento será um teste tão crítico quanto a crise tem sido. O que iremos fazer quando as coisas voltarem ao “normal”? Iremos reconhecer a anormalidade decadente das nossas normas pré pandemia? Nosso esforço conjunto irá apaziguar divisões partidárias, ou a capital do país fará o mesmo de sempre? Iremos aprender autocontrole e retardar nossa gratificação? Os estudantes e faculdade que repovoam câmpus abandonados irão redobrar seus esforços para despertar nossas universidades, ou o progressivismo será exposto como uma indulgência pueril? A indústria de entretenimento pós pandemia irá tomar juízo para oferecer arte pungente e edificante, ou irá continuar a alimentar nossa fome insaciável por distrações estimulantes? A pandemia irá nos tornar mais ou menos viciados nas beligerantes viralidades das mídias sociais? O auto-isolamento irá permanentemente isolar vizinhos um do outro, ou nossa batalha comum e medo mútuo nos aproximará? Mais importante: iremos sair da pandemia com um conhecimento aprofundado que há um Deus no céu? Iremos temê-lo, ou, como Faraó, endurecer nossos corações assim que Deus nos conceder alívio?

Nós podemos estar enfrentando o fim de um mundo desgastado. Nós podemos não estar. De ambas as formas, nós estamos encarando uma revelação apocalíptica, e estamos encarando isso agora. O que será exposto?

Texto original: Apocalypse now?
Tradução: Thais Cavalar
Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar

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