Chamados à Eucaristia

Felipe Felix
Basileia
Published in
4 min readMar 13, 2018

por Peter J. Leithart

Paint of Last supper of Christ in st. Nicho

Ao longo dos séculos, a teologia e a prática da Eucaristia foram distorcidas de várias formas. Uma das distorções mais fatais é também uma das mais sutis: a tendência de colocar a Eucaristia num lugar especial da vida e próprio, no domínio do “sacro” ou “religioso.” A vida acontece aqui, e a Eucaristia acontece lá.

Alexander Schmemann mostrou que essa tendência está profundamente enraizada na teologia Ocidental do simbolismo, e isso nos cega para os contornos Eucarísticos do trabalho, vocação, criatividade e cultura — da própria vida. Refletir sobre a Eucaristia é o começo da sabedoria cultural. O participar da Eucaristia nos orienta corretamente em toda esfera do criar humano.

Como assim? Nós podemos começar com o óbvio: na mesa do Senhor, nós não comemos cereais, comemos pão. Não comemos uva diretamente da vinha; nós bebemos vinho. O pão e vinho são produtos culturais, criação glorificada pelo trabalho paciente e habilidoso do homem.

O Criador pode criar por fiat — por um decreto. Jesus transformou água em vinho em um instante. Nós não podemos fazer isso. Mesmo assim, nosso trabalho replica o trabalho de Deus. A maior parte de Gênesis 1 não é criação ex nihilo — a partir do nada. Na verdade, Gênesis 1 descreve como Deus dá forma e preenche o vazio sem forma. Ele toma o mundo, quebra, junta novamente de novas maneiras, atribui um novo nome e diz ser bom.

Como James Jordan tem argumentado, esse padrão é inerente à ação humana. Nós agarramos o mundo, quebramos e remontamos, renomeamos, e avaliamos o produto como bom ou ruim. Nós aramos, plantamos, cultivamos, colhemos. Nós esmagamos o cereal em farinha, misturamos e cozinhamos, e chamamos de pão. Nós esmagamos o sangue das uvas, gerenciamos sua fermentação, e chamamos de vinho. Feitos na imagem de Deus, nós só conseguimos imitar a criatividade do Criador.

A Eucaristia é, no mínimo, uma ressonante aprovação litúrgica das transformações que fazemos na criação. O Cristianismo não ensina que a natureza não desenvolvida é melhor que a cultura artificial. Nem toda mudança é boa, mas Deus nos colocou no mundo para mudá-lo.

A Eucaristia indica a direção correta dessa mudança: nosso trabalho tem como objetivo uma festa compartilhada. O “compartilhada” é crucial. É verdade, nós trabalhos para o lucro pessoal; nós fazemos pão para que possamos comê-lo. Mas nós não fomos feitos para comer e beber sozinhos. Nossos produtos são pães, feitos para serem quebrados e distribuídos.

A “festa” também é crucial. É verdade, nós temos metas utilitárias. Nós construímos para ter abrigo e cozinhamos para abastecer o corpo. Mas nós não transformamos o mundo apenas para torná-lo mais útil. Nós somos cozinheiros, padeiros e viticultores assim como caçadores, coletores e fazendeiros. O trabalho é arte, o que torna a criação mais agradável.

A Eucaristia também aponta para o propósito transcendente do nosso trabalho. A festa compartilhada que é o fim do trabalho acontece na presença de Deus. Nossa criação é completa no Shabat, em adoração. Nós trabalhamos para que não estejamos de mãos vazias diante de Deus (Ex 23:15).

No final eterno de todas as coisas, nosso trabalho encontrará seu lugar na cidade nupcial do céu, a cidade adornada com os tesouros dos reis e das nações, a cidade cuja vida é nada além de uma ceia de casamento. Entre a criação e o escaton, tudo o que fazemos é para essa festa.

A Eucaristia é um sacrifício de adoração e de auto-doação. Deus recebe nossos presentes, e nos dá de volta. Ele tem prazer em nossos presentes nos permitindo ter prazer neles. Em sua mesa, as coisas que manufaturamos e manipulamos são reveladas como meios de comunhão com ele.

É por isso que a refeição da igreja é ação de graças, “Eucaristia”. Se pararmos para pensar, agradecer pela comida é um hábito estranho: Nós fizemos o pão e o vinho, ainda assim somos gratos a Deus por eles. Mas nós estamos confessando a verdade sobre a cultura: que as coisas que fazemos e apreciamos são presentes de Deus para nós.

A gratidão novamente realça o propósito transcendente do trabalho. O apóstolo Paulo escreve que toda coisa criada é boa, e nada é para ser rejeitado se for recebido com ação de graças e se for consagrada pela Palavra de Deus e pela oração (1 Tm. 4). Quando damos graça, seja na nossa mesa ou na mesa do Senhor, seja na mesa de jantar ou na escrivaninha, nós dedicamos o trabalho de nossas mãos a Deus.

Portanto, a Eucaristia é a vocação da humanidade, o trabalho da história: a criação crua transformada em cereais e uvas; a criação cultivada transfigurada pelo cozer e fermentar; a criação cozinhada apreciada pelos trabalhadores e adoradores, como comunhão com Deus. Na Eucaristia, nós antecipamos o clímax da criação, a eterna festa de casamento do Cordeiro.

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