Coisas Santas para os Santos

Leonardo Daneu Lopes
Basileia
Published in
5 min readNov 17, 2018

por Peter J. Leithart

Arcanjo Gabriel visita Zacarias

Nenhum estrangeiro comerá das coisas sagradas; o hóspede do sacerdote nem o seu jornaleiro comerão das coisas sagradas. Mas, se o sacerdote comprar algum escravo com o seu dinheiro, este comerá delas; os que nascerem na sua casa, estes comerão do seu pão. (Lv 22:10–11)

Coisas santas para os santos. Através destas palavras antigas, os santos da igreja primitiva eram convidados a receberem o corpo e o sangue do Senhor à mesa do Senhor. Os ”elementos santos” do pão e do vinho eram oferecidos ao “povo santo”. Apesar da frase parecer ser um pouco mais do que um misterioso bocado de história litúrgica, é de fato uma das declarações mais radicais da história do homem. Tão radical, parece, para os cristãos a compreenderem inteiramente, que no século VI as mulheres foram proibidas de tocar o pão eucarístico, e no Ordo Romanus VI do século X, o privilégio de tocar os elementos se restringiu aos bispos, padres e diáconos. Pão e vinho consagrados se tornaram santos demais para qualquer um se aproximar a não ser um clérigo consagrado.

O caráter radical deste pronunciamento litúrgico nos escapa, a não ser que compreendamos algo sobre a ordem de santidade que estruturava o Antigo Israel. Desde o tempo em que o tabernáculo foi construído no Monte Sinai, Israel era organizada de acordo com o que um estudioso chama de “santidade gradativa”, um mapa de zoneamento religioso do mundo. Qualquer lugar ou qualquer coisa do mundo se encaixa de alguma forma no mapa. No centro do mundo estava o tabernáculo, o lugar mais santo dentro do campo santo, a tenda em que Yahweh se entronizou em glória. Esta tenda era dividida em três zonas, com diferentes graus de santidade. O santuário interno do tabernáculo, chamado Lugar Santíssimo, era o mais santo de todos; o primeiro espaço, chamado Lugar Santo, era de um grau de santidade inferior; e o pátio que cercava a tenda, era de uma grau ainda menor. Quando Israel entrou na terra prometida e estabeleceu um santuário permanente, este se tornou o centro do sistema de santidade de Israel, e a terra era mapeada a partir deste ponto central — e não somente a terra, mas todo o mundo. Vá rumo ao norte em direção ao mar da Galileia e o território será menos santo; vá em direção à glória de Yahweh no tabernáculo e começará a entrar em território santo.

Dentre outras coisas a palavra ”santo” significa “inaproximável”, e o mapa tinha a intenção de manter a maior parte das pessoas afastadas do centro, de proteger pecadores de estarem na presença de um Deus Santo. Gradações similares de santidade foram portanto aplicadas a pessoas. Correspondendo ao Lugar Santíssimo havia o ”homem santíssimo”, o sumo sacerdote, que era o único permitido a entrar no santuário interno no Dia da Expiação (Lev. 16: 2). Outros sacerdotes entravam no aposento externo para executarem diversas outras tarefas, e também eram permitidos se aproximarem do altar de bronze no pátio do tabernáculo para oferecer sacrifícios nele. Apesar de todo israelita ser um sacerdote (Ex 19: 6), apenas os sacerdotes da ordem de Aarão eram permitidos servirem no altar. Correspondendo aos níveis de espaço santo (Lugar Santíssimo, Lugar Santo e Pátio), havia também uma hierarquia de pessoas santas (Sumo Sacerdote, sacerdotes e israelitas leigos).

Comida era uma das marcas de santidade para as pessoas, pois também era categorizada por um sistema de gradação de santidade. A carne de uma “oferta de pecado”, por exemplo, era classificada como “santíssima” e podia ser comida apenas pelos sacerdotes e somente num lugar santo (Lv 6:26, 29). Porções de outros sacrifícios, classificadas como “santas”, podiam ser comidas pelos membros da casa de um sacerdote (Lv 22:10–16). Carne da oferta de paz podia ser comida por um adorador israelita (Lv 7:11–18), porque a carne da oferta de paz não tinha nenhum status de ”santidade”. Regras sobre a alimentação, portanto, seguiam as linhas de fronteira do sistema de santidade, e impedir o não santo de comer a comida santa era uma parte importante na preservação da santidade de Israel. Sob a Antiga Aliança, “coisas santas para o santos” significava “comida santa para os sacerdotes”.

Israel não era o único povo antigo a se organizar de acordo com tais princípios. Muitas sociedades antigas mapeavam o mundo de forma similar à de Israel, com um templo no axis mundi e o resto do mundo radiado a partir daí. Apesar de pensarmos nos gregos antigos como arco-racionalistas, por exemplo, existem grandes evidências de que eles eram atormentados pelo medo de impurezas e violações de espaços sagrados como qualquer judeu. Cidades Gregas eram pontilhadas de pilares sagrados, imagens, e templos, todos devendo ser guardadas de poluição com a mesma vigilância que o tabernáculo de Yahweh.

O Evangelho de Cristo é o anúncio de que todo este sistema foi desfeito pela cruz e ressurreição de Cristo. Na cruz, Ele derrubou a “barreira, o muro de inimizade” que separava judeus e gentios, e ao fazê-lo, Ele rasgou o véu que separava os sacerdotes do povo. Tendo obliterado esta parede na cruz, Jesus forma “um novo homem” das duas raças do mundo antigo para que os gentios que passaram a crer sejam agora “concidadão com os santos”. Ao invés de uma parede, Jesus está construindo um templo, usando judeus e gentios como tijolos (Ef 2:11–22), e neste templo, todos os crentes em Jesus brilham como as lâmpadas de um candelabro. Jesus, em resumo, remapeou o mundo a partir da cruz; a partir da cruz, Jesus começou a formar um novo tipo de povo e um novo tipo de mundo.

Como no Antigo Testamento, o mapeamento religioso descrito no Novo Testamento é manifestado em regras sobre comida. Enquanto o Antigo Testamento restringia o acesso à comida santa, o Novo é um convite aberto ao banquete. Em lugar de muitas refeições com várias regras de acesso, existe agora apenas uma refeição, e esta refeição é oferecida a todos que são santos nAquele que é Santo. Cada vez que observamos a Ceia do Senhor como Jesus ordenou, estamos celebrando o evangelho do véu rasgado e da parede derrubada. Ao incluir todos os santos no banquete santo, estamos encenando a Nova Aliança, nos tornando o corpo único que somos, o corpo unificado em que não há gentio ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Cada vez que celebramos esta refeição, estamos avançando o trabalho de Cristo de remapear o mundo.

“Coisas santas para os santos”, de fato.

Tradução: Leonardo Daneu Lopes

Fonte: Blessed Are The Hungry, Ch. 4

Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar

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