Cultura

Leonardo Daneu Lopes
Basileia
Published in
6 min readApr 23, 2017
The Garden of Eden — Thomas Cole

Nos movimentos da liturgia, o Espírito está refazendo nossos corpos, transformando-os em instrumentos da justiça de Deus, em lugar de instrumentos de pecado. Na liturgia, Deus nos refaz, para que possamos refazer o mundo em imitação a Ele.

Um rio emerge no Éden, flui pelo jardim-santuário, e rega o mundo rio abaixo. Uma nascente nasce debaixo do trono de Deus no templo, lança-se sobre a queda d’água, e então para fora na terra, em direção ao Mar Morto, onde desboca e transforma água salgada em água doce. Em Cristo, as dádivas secretas de Deus — as tábuas da Palavra, o pão dos céus, o cetro da autoridade — estão acessíveis e são distribuídas a todos que estão dispostos a recebê-las. Vida flui do santuário. A cultura é o fruto de sementes plantadas no culto.

Isso é tudo muito bonito, talvez poético. Mas será que significa alguma coisa? Será que é algo mais que poesia? Será que a conexão etimológica entre cultus e cultura é nada mais do que etimologia?

Bíblia. Liturgia. Cultura. Todos os três, todos os três juntos. Nós acreditamos que a ligação entre adoração e cultura é mais que poesia, mais que etimologia. É nossa convicção de que não podemos ter uma cultura sadia sem uma adoração sadia, e não podemos ter uma adoração sadia sem que ela esteja mergulhada na Bíblia e em conformidade com a Bíblia. Prosaicamente, dizemos que a reforma da Palavra, do Sacramento, e da liderança da igreja têm primazia em relação à transformação da cultura. Poeticamente, biblicamente, dizemos que a renovação da terra e do mundo vem do jardim.

Há um caminho histórico óbvio para afirmar esta hipótese, mostrando como a alta cultura Ocidental tomou a forma que tem a partir de suas raízes na liturgia cristã. Bach escreveu cantatas, Mozart escreveu um Réquiem, e apesar do crescimento da música de concerto, podemos encontrar música litúrgica diretamente no alto modernismo, em Messiaen e em Arvo Part e John Tavener hoje. Nós poderíamos investigar a influência da arquitetura Gótica através dos anos, ou como a Bíblia formou, e ainda informa, a língua e a poesia, onde quer que ela ponha os pés. Poderíamos traçar as influências estilísticas e substantivas das artes visuais da liturgia no modernismo e na pintura contemporânea. Francis Bacon e Lucien Freud pintam trípticos grotescos, e as pinturas de Mako Fujimura são cheios de traços da cidade dourada que há de vir.

Eu quero tomar um rumo diferente examinando o que podemos chamar de “anatomia” da ação humana. A Bíblia é repleta de simbolismos de corpo, e quando olhamos para todos eles, obtemos uma anatomia completa da ação humana. A ação humana, em termos bíblicos, envolve o corpo todo, e se move quiasticamente da cabeça às mãos aos pés, de volta às mãos e à cabeça.

Ações começam com julgamentos sendo formados, um ato da visão. Os olhos não são apenas órgãos de simples observação empírica; os olhos não são passivamente receptivos. A visão é um ato de julgamento. (Alguém poderia dizer que na Bíblia todo ato de ver é um ato de “ver à luz de.”)

Alternativamente, uma ação começa no ouvido, escutando uma ordem, um imperativo que empurra alguém por um caminho e, assim, dá início a um (talvez inesperado) fim futuro.

Em qualquer caso, uma ação se inicia com a cabeça, nos olhos e ouvidos.

Vendo e/ou ouvindo, uma pessoa estende uma mão. Um soldado ouve a trombeta do alarme e pega sua arma. Um empreendedor percebe, julga uma oportunidade e a aproveita agarrando-a. Alguém numa posição de autoridade percebe uma injustiça ou desordem e já toma as devidas providências. Um artesão avalia que um pedaço de madeira tem potencial para glória, e a toma. “Sob a mão” é uma forma de dizer “sob a autoridade”, e cada ação humana envolve algum emprego de autoridade.

No simbolismo corpóreo da Bíblia (compartilhado por boa parte do Oriente Próximo antigo), o pé é o órgão de domínio. Terras eram reivindicadas ao pisá-las; inimigos eram subjugados e esmagados pelos pés; reis vitoriosos colocavam um pé sobre o pescoço dos derrotados. Uma vez que algo está em mãos, é então trazido sob o domínio dos pés.

Mas o pé não é o órgão final da ação humana. Apenas tiranos e brutos governam exclusivamente com o pé, somente pisoteando e os mantendo subjugados sob seus pés.

De forma mais clara: O rei que empunha sua arma e pisoteia seus inimigos deveria então levantar seu inimigo, estabelecendo a paz. O artesão que “pisoteia” seus materiais para que cumpram sua vontade usa então suas mãos para finalizar, polir, glorificar. Um fazendeiro “pisa” as ervas daninhas e subjuga a terra, mas apenas com o objetivo de usar as mãos para cultivá-la e revesti-la com nova glória.

Uma vez que alguém pega o fruto de seu trabalho em mãos, ele o leva de volta à cabeça, talvez aos olhos para inspeção e avaliação (“Provai, e vede que o Senhor é bom”), mas mais especificamente à boca para provar e consumir. Isso é mais literal quando falamos sobre agricultura e lavoura; mas o consumo é o estado final de toda ação humana, porque toda ação visa incorporar alguma parte do mundo a alguém, incorporar outrem a um grupo de amigos. Um governante age e suprime o mal para desfrutar os frutos da paz; um artesão toma seu material em mãos e o transforma em algo útil e/ou prazeroso, algo “saboroso”; um homem de negócios organiza empregados e bens para produzir algo que tanto ele quanto outros podem aproveitar.

Toda ação humana é uma ação do corpo todo. A anatomia quiástica da ação humana é: Olhos/ouvidos para as mãos para os pés, de volta às mãos, e por fim de volta à boca.

Mas, o que isso tem a ver com liturgia? Muito, em todos os sentidos. A anatomia da ação humana é um espelho das diferentes posturas de adoração. Entramos na presença de Deus, sob o escrutínio de Seus olhos que tudo vêem. Ouvimos Seus mandamentos e nos prostramos em confissão a Seus pés. Ele não nos deixa abjetos no pó, mas nos levanta ao toque de Sua Palavra reanimadora, um toque do Espírito que é o dedo da Palavra Encarnada. Prostramo-nos perante a arca de Yahweh, o estrado dos seus pés, mas Yahweh nos levanta e ergue a nossa cabeça. Dos pés, retornamos então às mãos de Deus, que agora não mais nos segura, mas nos levanta. Ele nos coloca em Sua mão direita, compartilhando sua autoridade conosco. Ele coloca em nossas mãos pão e vinho, e nos convida, “Tomai, comei, bebei.” Ele Se entrega a nós, para que nos tornemos osso do Seu osso, carne da Sua carne. A ação humana é uma imitação da ação de Deus na liturgia. E assim também, toda ação é Eucarística, cumprindo um mandamento (ouvidos) para tomar (mãos) e partir (pés) o pão, para que possa ser compartilhado (mãos) e comido (boca).

Através da liturgia, nossos corpos são sintonizados, treinados para a ação apropriada. Deus não nos toma pela mão para sugar a nossa vida, mas para nos moldar e nos refazer. Deus não nos leva a Seus pés para nos pisotear, como algumas teologias semi-cristãs implicam, mas nos levanta para compartilhar da Sua vida e governo. Deus abre Suas mãos para nos dar alimento, para que possamos provar e ver a bondade do Senhor em cada dádiva Sua. Nos movimentos da liturgia, o Espírito está refazendo nossos corpos, transformando-os em instrumentos da justiça de Deus, em lugar de instrumentos de pecado. Na liturgia, Deus nos refaz, para que possamos refazer o mundo em imitação a Ele.

Portanto, tudo isso é literalmente verdade: Um rio emerge no Éden, flui pelo jardim-santuário, e rega o mundo rio abaixo. Uma nascente nasce debaixo do trono de Deus no templo, lança-se sobre a queda d’água, e então para fora na terra, em direção ao Mar Morto, onde desboca e transforma água salgada em água doce. Em Cristo, as dádivas secretas de Deus — as tábuas da Palavra, o pão dos céus, o cetro da autoridade — estão acessíveis e são distribuídas a todos que estão dispostos a recebê-las. Vida flui do santuário. A cultura é o fruto de sementes plantadas no culto.

Texto original: Cultura

Autor: Peter J. Leithart

Tradução: Leonardo Daneu Lopes

Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar, Felipe Felix

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