Medo

Thais Cavalar
Basileia
Published in
8 min readMay 24, 2020

Bogumil Jarmulak

The Valley Of The Shadow Of Death — George Inness

O medo é um companheiro inseparável da vida humana. Nós temos medo de doença e da morte, pobreza e cataclismas, rejeição e traição, fracasso e vergonha. Temos medo do desconhecido, logo temos medo do futuro e da vida em si. A menos que vivamos na crença ilusória que nós controlamos completamente nossas vidas e todas as suas circunstâncias. Isso, no entanto, tornará nossa queda ainda maior.

A primeira vez que a Bíblia fala diretamente sobre medo é em Gênesis 3:10: “[Adão] disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me”. Poderíamos chamar esse tipo de medo de teofobia, ou medo de Deus. Adão escondeu-se de Deus porque ele sabia que havia errado no confronto com a Serpente na Árvore do Conhecimento. É interessante que a mesma palavra hebraica traduzida no verso acima como “temer” também aparece, por exemplo, em Levíticus 19:3: “Cada um temerá a sua mãe e a seu pai”. Portanto, o medo tem pelo menos duas faces — ele pode ser o medo causado pela culpa e as consequências esperadas da transgressão, mas pode também ser o que chamamos respeito ou reverência. Outras passagens na bíblia também falam do medo do perigo, do desconhecido, da morte. Deuteronômio 20:8 acrescenta que o medo é contagiante e, por isso, apenas os homens que podiam controlar o “medo do coração” participavam das guerras de Israel. Aparentemente, o medo incontrolável nos priva da habilidade de encarar ameaças — transforma-nos em covardes.

Com essas breves observações, podemos ver que o medo pode ser justificado ou não. Ele pode desempenhar uma função negativa ou positiva. De certo modo, o medo é um instinto primordial que visa nos proteger de perigos. A dor sinaliza que algum perigo já está presente, o medo sinaliza que o perigo está à espreita. Nosso cérebro examina constantemente o nível de perigo em um ambiente, e o faz em proporção a nossas experiências passadas. Isso significa que uma pessoa que vive constantemente amedrontada e em dor tem uma tendência maior de sentir medo e eventualmente começa a sentir medo, mesmo quando não há razão para temer (cf. Sl. 53:5). Todavia, a total ausência de medo também é uma ameaça, porque nos priva de um sistema de alerta rápido. A ausência de medo leva a falta de inibições, negligência, descuido, lentidão e arrogância. A vida sem medo, como a vida sem dor, nos exporia a riscos desconhecidos. Nós não seríamos capazes de perceber situações em que passar dos limites nos custaria caro. Embora a questão permaneça, reconhecemos as ameaças adequadamente? Adão no Jardim aparentemente cometeu um erro quando se escondeu de Deus. Por outro lado, ele não reconheceu a ameaça em conversar com a Serpente. Esse encontro não lhe despertou com o instinto correto de escapar. O medo como um sistema de alerta rápido não é sempre confiável.

Então como iremos viver com medo, já que não podemos nos livrar dele e fazer isso também não seria uma boa solução? As pessoas adotam diferentes estratégias na luta contra o medo e tentam várias vezes controlá-lo. Provavelmente, o mais comum dentre eles seja simplesmente a rotina da vida cotidiana que raramente nos surpreende. Costumes e rotinas removem grandemente o desconhecido da experiência, trazendo previsibilidade para nossas vidas. Isso, por sua vez, reduz o nível de medo sem o eliminar completamente. Porém, algumas vezes buscamos outros métodos para combater o medo. Por exemplo, nós criamos uma visão de mundo que tenta explicar o mundo de forma a eliminar o sentimento de medo. Por exemplo, Epicuro questionou sobre o medo dos deuses e medo da morte, afirmou que os deuses não estão interessados em nossas vidas, porque eles têm outras coisas, mais interessantes, para fazer, e depois da morte, nós somos completamente desintegrados, logo não há chances de que poderíamos ser julgados por eles após a morte. Concluindo: não faz o menor sentido temer os deuses e o julgamento, nem a morte, já que a morte marca o final de nossa existência. Falsificar a realidade com o suporte de uma visão de mundo é um método bastante eficaz na luta contra o medo, no entanto, seu problema é que ela resulta em um desprendimento da realidade e fuga para o mundo da fantasia, que pode acabar levando a um comportamento esquizofrênico.

Outra coisa que também ocorre é que buscamos alívio do medo escapando para um estado de imaturidade — em voltar para os anos bem-aventurados da primeira infância, quando os pais nos proviam com segurança e satisfaziam nossas necessidades. Ademais, naquela época, nós tínhamos não apenas guarda-costas pessoais ao nosso serviço nos dando a sensação de segurança, mas também éramos personagens com poderes mágicos. Era suficiente chorar ou gritar, e nossos servos imediatamente apareciam para apaziguar a dor e nos prover de satisfação. Entretanto, por o retorno à infância não ser possível, isso explica o por que de estarmos buscando “pais adotivos” na forma de personalidades fortes, ou pelo menos aqueles que dão a impressão de serem oniscientes, e logo também onipotentes. Nós queremos basear nossas vidas e confiar nosso futuro à líderes fortes. Isso, pelo menos parcialmente, explica o fenômeno de apoio ao Hitler e ao Stalin, como também o amontoamento de pessoas em panelinhas, gangues e seitas. Um líder forte não é apenas uma fonte de segurança, mas também nos livra da culpa, porque ele carrega a responsabilidade por nossas vidas e também toma as decisões mais importantes por nós. Quando ele falha, ele acaba se tornando o bode expiatório perfeito para ser punido pelas esperanças não cumpridas.

Vale a pena lembrar, contudo, que tais “personalidades fortes” estão geralmente interessadas em nos manter em um estado de ansiedade que supostamente somente eles podem aliviar, bem como em nos manter em um estado infantil, porque isto os permite fazer o papel de nossos pais. Um ditador só pode ser cercado por pessoas imaturas ou com medo. Como Hebreus 2:15 nos lembra, o medo é uma ferramenta muito eficaz para a servidão, enquanto Efésios 4:14 acrescenta que a imaturidade nos torna particularmente suscetíveis a manipulação. Pessoas tímidas pedem para alguém cuidar deles e estão dispostos a abrir mão da liberdade pela sensação de segurança. Esse mecanismo provavelmente explica o desejo recorrente dos hebreus de retornar ao Egito. Em uma retrospectiva sentimental, o Faraó parece-lhes como um bom pai da nação — muito melhor que Moisés os liderando ao desconhecido em meio a sofrimentos e a escassez.

No entanto, como o medo pode ter uma função positiva em nossas vidas (como mencionamos), e se livrar dele a todo custo não é uma boa solução, o melhor a fazer é dominá-lo, domá-lo tanto quanto for possível — para usá-lo para bons propósitos. Não se trata de se livrar completamente do medo, mas sobre adquirir coragem, cujo significado não é ausência de medo, mas sim enfrentar o medo sem ceder a ele. Deus não diz apenas: Não temas! Mas diz também: Seja corajoso! Mostre o devido respeito, mas não seja escravizado pelo medo. A completa ausência de medo nos priva da habilidade de avaliar adequadamente a situação, e alimentar-se de medo leva à paralisia da vida. Isso significa que precisamos olhar o medo nos olhar, e encará-lo, e então reagir de acordo. Se o medo é justificado, então pode valer a pena levar seus avisos a sério. Senão, temos que fazer algo com ele, para que — falando coloquialmente — não enlouqueçamos. Nem tudo que desperta medo é uma ameaça real. E não todo medo é proporcional a sua ameaça. Além disso, há forças e pessoas no mundo que querem fomentar nosso medo precisamente para que sejamos submissas a elas, e submissas por nossa própria livre vontade; que nós mesmos troquemos nossa liberdade por garantias de segurança.

A luta contra o medo começa com a identificação dele e de sua fonte. Só então nós podemos decompô-lo e domá-lo. E isso pode ser feito apenas por um passo de cada vez, porque “basta a cada dia o seu mal” (Mt. 6:34). Nós não somos capazes de enfrentar um grande fragmento de realidade de uma vez, assim como Israel, que não conseguiu ocupar toda a Terra Prometida em uma ação militar brilhante, mas teve que fazê-lo passo a passo, pouco a pouco (Ex. 23:30, Dt. 7:22). Aquele que tenta enfrentar todos os seus medos de uma vez, geralmente cai em neurose. Vale a pena lembrar que a terapia de choque usada antigamente geralmente não funciona no tratamento de vários tipos de fobias. O método mais efetivo é apenas pequenos passos consistindo em se acostumar com a fonte de medo e então gradualmente o superando. O dragão em toda a sua glória sempre parece assustador e terrível. Se você quer causar uma grande impressão, você precisa exercitar seus músculos e crescer. Mas as partes individuais do corpo de um dragão não são tão assustadoras como a besta inteira. Logo, se uma pessoa tem medo de agulhas, por exemplo, você não deve inserir tantas agulhas quanto forem possíveis em seu corpo na esperança de insensibilizar seus instintos, você deve começar a domar o medo pela mera presença de uma agulha a sua volta e em condições em que a pessoa é capaz de controlar. Aqui, a ajuda de uma pessoa cujo paciente pode confiar e que deseja que ele ande com seus próprios pés é indispensável. Alguém assim introduz uma atmosfera de confiança diante da incerteza — como um bom treinador dando aulas de natação.

Talvez seja por isso que o apóstolo Paulo, escrevendo sobre medo e incerteza, pergunta de forma retórica: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8:31). A consciência de que Aquele que observa nosso destino é um Deus bom, fiel e poderoso, que nos leva à maturidade, nos ajuda a enfrentar os nossos medos. Isso não significa que Deus nos salva de cada situação potencialmente perigosa. Paulo continua listando perigos que encontramos na vida e que preenchem nossos corações com temor: dificuldades, opressão, perseguição, fome, nudez, espada, morte, vida, potestades, presente e futuro. Ao mesmo tempo, porém, ele promete que nada nem ninguém nos removerá das mãos de Deus — nada irá nos separar do amor de Cristo que morreu e ressuscitou para a nossa salvação, para nos livrar do medo da morte. Deus não nos protege de todas as ameaças, ele não nos livra de nenhuma prova de fé, mas ele nos guia através delas para que ganhemos coragem e maturidade. Deus não age como muitos “líderes fortes” que querem que as pessoas se tornem servilmente viciados por mantê-los em um estado de imaturidade emocional e de medo. Ao invés disso, Ele nos prepara para uma vida responsável de liberdade e disciplina, e Ele faz isso como um bom pai que, por outro lado, não expõe o filho a um mal que não passa suportar (cf. I Co. 10:13), mas ele também não o cerca com um casulo apertado, o isolando de uma vida normal. Pois Ele sabe que é apenas interagindo com o mundo real que nós crescemos em coragem, força e sabedoria.

Texto original: Fear
Tradução: Thais Cavalar
Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar

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