Memorial do Cordeiro

Felipe Felix
Basileia
Published in
5 min readJan 30, 2018

por Peter Leithart

“Memória”, na fala comum, normalmente refere-se a um processo mental interno, mas comunidades, juntas, também “lembram” coisas. Essas “memórias sociais” ajudam a unir os membros de um grupo, reforçando o senso de um passado e presente compartilhados, e guiando-os a um futuro comum. Eventos do passado não são apenas “lembrados” mentalmente, mas são encenados em feriados e festas. Os fogos de artifício no dia da independência estadunidense recordam a guerra de independência e trazem algum senso de pertencimento a um grande experimento de liberdade humana. Comer e beber na igreja é uma memória ritual da morte de Cristo e nos lembra da história da qual nós somos um novo capítulo.

Muito embora essas perspectivas sejam importantes para entender como a Ceia molda a igreja como um povo unido, estas dinâmicas sociais não dão uma imagem completa do aspecto “comemorativo” do sacramento. A Ceia não é apenas um mero rito humano, e os humanos não são os únicos participantes ativos. Na mesa do Senhor, as crianças comem a comida fornecida pelo nosso Pai celestial, e a noiva comunga com seu Esposo através do poder do Espírito. Na medida em que é um memorial, a Ceia envolve tanto a igreja como o Deus Triuno em quem vivemos e nos movemos.

Mas como a Ceia é um “memorial” que envolve Deus e Sua igreja? Considerações sobre a refeição da Páscoa trazem alguns insights. É praticamente óbvio que Jesus morreu para cumprir a Páscoa. João Batista chama Jesus de cordeiro Pascal (Jo. 1:29); o evangelho de João registra que esse Cordeiro foi abatido na mesma época em que os Judeus estavam ocupados preparando seus cordeiros (Jo. 19:14; Ex. 12:3–6); e, como se todas essas pistas não fossem suficientes, Paulo nos diz claramente que “Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós” (1 Cor. 5:7). Porém, o derramamento de sangue não era suficiente para afastar a praga final. Para a Páscoa “funcionar”, o sangue deveria ser exibido no batente da porta da casa, e esse princípio aparece também em todo o sistema sacrificial. É verdade, “sem derramamento de sangue não há remissão”; mas é igualmente verdade que “sem a exibição de sangue não há remissão” (Lv. 1:5; 3:2; 4:5–7 etc).

Quando tentamos explicar como a morte de Jesus cumpre a Páscoa nesse sentido, ficamos com um enigma. De acordo com o livro de Hebreus, Jesus exibiu Seu sangue no tabernáculo celeste (Hb. 9:11–28), mas isso cumpriu o ritual do Dia da Expiação, não o ritual da Páscoa. Podemos dizer que a própria cruz, ou talvez a terra, serviu como “batente e umbral” dessa Páscoa, mas isso parece implicar que a salvação é universal, que todos na terra estão dentro da casa de Israel marcada com sangue. Ou, podemos desistir e concluir que a Páscoa é cumprida em geral mas não nos detalhes específicos do ritual.

Quando nos lembramos que a Páscoa não era apenas um tipo da morte de Cristo mas também da Ceia do Senhor, podemos chegar em respostas melhores para essas questões. Jesus instituiu a Ceia em uma refeição associada com a Páscoa (Lc. 22:1, 14–15), e esse foi o clímax da prática de Jesus de celebrar Páscoas alternativas com Seus seguidores (Jo. 6:1–14). Paulo confirma essa ligação quando, após declarar que Cristo é nossa Páscoa, ele exorta: “façamos a festa … com os ázimos da sinceridade e da verdade.” (1 Cor. 5:8).

A Ceia da igreja é uma nova Páscoa não apenas porque nós consumimos a carne e o sangue do Cordeiro de Deus mas também porque é, assim como a Páscoa, uma refeição “memorial”. Para muitos, isso sugere que a Páscoa anual foi feita para lembrar Israel de sua grande libertação do Egito, e isso certamente era um resultado da festa (Ex. 12:24–27). Porém, nas Escrituras, um “memorial” não é projetado para lembrar o povo das obras de Deus, mas para lembrar Deus de Suas palavras. O primeiro memorial mencionado na Bíblia era o arco-íris que Deus colocou no céu depois do dilúvio como um “sinal da aliança”. Deus explicou como deveria funcionar: “E estará o arco nas nuvens, e eu o verei, para me lembrar da aliança eterna entre Deus e toda a alma vivente de toda a carne, que está sobre a terra” (Gn. 9:16). O arco servia como um memorial para Deus, não para Noé e seus filhos.

De forma similar, no sistema sacrificial, os “memoriais” eram direcionados a Deus, não aos adoradores. Um punhado de farinha era queimado no altar, subindo a Yahweh em fumaça, e isso era chamado de “memorial” (Lev. 2:2, 9, 16; 5:12). Um sacerdote colocava o memorial no altar para que fosse uma “oferta de comida de aroma suave a Yahweh” (Lev. 2:2). No Novo Testamento, as orações e esmolas de Cornélio também subiram diante de Deus como “memorial” (Atos 10:31).

Nesse mesmo sentido, a refeição anual da Páscoa era um memorial do Êxodo. Sempre que Israel celebrava a Páscoa, ela estava consciente que vivia num mundo perigoso, ameaçada de várias maneiras por seu próprio pecado e pelas nações poderosas que a cercava. Quando Israel celebrava a festa, ela estava reencenando diante Yahweh a refeição de sua libertação, lembrando-o de como Ele cumpriu Sua aliança trazendo Israel do Egito, chamando-o para agir novamente em seu favor, instando-o a lembrar de Sua aliança. Quando Yahweh se lembrasse de Sua aliança com Israel, Ele descobriria Seu braço para lutar por ela (Ex. 3:6–9). Cada páscoa, em resumo, era um clamor por um novo Êxodo. Claro, não era suficiente que Israel invocasse a Deus para lutar por ela. Já que Israel pecou, ela também invocava a Yahweh para o perdão. Quando ela celebrava a festa da Páscoa no tabernáculo e no tempo, o sangue exibido no altar era um “memorial”, invocando a Deus para perdoar seus pecados. Quando Yahweh se aproximasse, Ele veria o sangue e passaria sobre seus pecados.

Quando Jesus instituiu a Ceia do Senhor, Ele chamou de Seu “memorial” (Lc. 22:19, 1 Cor. 11:24–25), e isso deveria ser entendido no mesmo sentido dos memoriais do Antigo Testamento. Nossa refeição não foi projetada em primeiro lugar para nos lembrar do que Jesus fez, embora o faça, e celebrá-la renova nossas memórias da cruz e do túmulo vazio. Porém, em sua essência, a Ceia não é uma refeição para nos ajudar a lembrar; é uma refeição memorial. Como a Páscoa, ela é direcionada ao Pai, lembrando-o da sua aliança selada no sangue de Seu filho, clamando a Ele para se achegar e agir em nós. O sangue de Cristo foi derramado de uma vez por todas, mas cada vez que partimos o pão e bebemos o vinho diante do Pai, nós exibimos os símbolos do sacrifício de Cristo para “lembrar” o Pai desse ato único. Ao ver o sangue do Cordeiro verdadeiro, Ele renova Sua aliança e anuncia Seu perdão. Ao ver o sangue do Cordeiro, Ele passa sobre e executa Seus julgamentos contra o Egito.

Autor: Peter J. Leithart

Texto original: Capítulo 3 de Blessed are the Hungry

Tradução: Felipe Felix

Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar

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