Não andeis ansiosos

Felipe Felix
Basileia
Published in
11 min readMar 19, 2018

por Peter J. Leithart

The Sermon on the Mount — Heinrich Hofmann

Jesus anuncia a nova lei na montanha; Ele é o Moisés em um novo Sinai. Mas nessa passagem, por alguns instantes, Jesus assume outro papel — o papel de Salomão, o sábio. O final de Mateus 6, mais que qualquer outra passagem, se assemelha com a literatura de sabedoria, especialmente com o livro de Provérbios.

Como Salomão, Ele nos aponta o mundo natural para nos ensinar sobre Deus e sobre nossas responsabilidades diante de Deus. “Vai ter com a formiga; olha para seus caminhos, e sê sábio,” Salomão tinha dito. Existem três coisas que são majestosas — o leão, o galgo, e o rei a quem não se pode resistir (Pv. 30). Jesus, o Salomão maior diz, “Olhai as árvores e os lírios do campo. Aprenda uma lição do mundo a seu redor.”

Assim como Salomão, Jesus apresenta “dois caminhos,” dois caminhos na vida, um é o caminho da tolice e da frustração, o outro é o caminho da vida e da sabedoria. No começo de Provérbios, Salomão apresenta isso como uma escolha entre a Senhora Sabedoria e a Senhora Tolice, e ele insiste que o Filho busque a Sabedoria e escolha a Sabedoria. Jesus, o Salomão maior, também apresenta uma escolha diante de Seus ouvintes: Você não pode servir dois mestres; você tem que escolher qual caminho seguirá.

Como Salomão, Jesus está muito interessado com a maneira que consideramos e utilizamos as coisas do mundo. O livro de Provérbios está cheio de sabedoria prática para o nosso caminhar no mundo, e lida bastante com o dinheiro e a riqueza. Jesus, o Salomão maior, está interessado com nossa atitude em relação e com o uso da comida, bebida, vestuário e dinheiro.

Nós perdemos o sentido da passagem se apenas a classificarmos como literatura de sabedoria, um pouquinho de teologia natural, e então a arquivarmos por aí. O sermão inteiro foi prefaciado pelo anúncio da vinda do Reino de Deus, e isso é reintroduzido aqui no v. 33, onde Jesus nos diz para buscar não “sabedoria” mas o “reino de Deus e sua justiça”.

Perceba a maneira que Jesus descreve seus ouvintes no final. Ele distingue entre Seus ouvintes e os “Gentios”. O bando de discípulos de Jesus é o verdadeiro Israel, e os de fora são os “Gentios”. Os Gentios são obcecados com o sucesso terreno, riquezas e poder. Mas os discípulos devem ser diferentes, obcecados com o Reino de Deus e Sua justiça. Essas instruções são endereçadas aos discípulos, àqueles que foram resgatados do Egito, àqueles que foram chamados das suas redes, àqueles que foram curados pelo poder do Espírito que flui de Jesus.

A sabedoria que Jesus fala aqui é sabedoria apenas para os discípulos. A sabedoria que o Salomão maior fala sobre é tolice para os Gregos, e seria tolice para muitos Judeus também. Jesus não está fazendo argumentos que todo mundo consegue seguir, nem oferecendo garantias que qualquer um pode achar útil. Sua sabedoria só é sabedoria para aqueles que seguem o Filho, que tem um Pai celestial e que são cidadãos do reino que Jesus anuncia e inaugura. O que Jesus está ensinando é direcionado aos discípulos, e assume a realidade do que Jesus chama de reino. Isso é sabedoria apenas no novo mundo do reino.

O que Jesus diz aqui não é sabedoria segundo a maioria das perspectivas. Não seja ansioso. Pense sobre pássaros. Olhe os lírios. Não surpreende que tantos tenham lido os evangelhos como a história de uma criança do primeiro século, um hippie do mundo antigo, um Cínico. Ele parece nos dizer para abandonar a correria da vida e passar nosso tempo caçando borboletas. E Ele realmente parece estar fazendo um pouco disso. Suas instruções dependem do fato de que um novo mundo irrompeu no meio do antigo. Um novo reino e um novo rei são proclamados no meio da corrupção dos reinos mundanos, uma nova cidade no meio das cidades velhas.

A Cidade Velha é uma cidade de ansiedade. Para Jesus, ansiedade não é apenas um sentimento ou emoção que experimentamos em particular. É isso. Mas também é um princípio organizacional de um mundo, uma estrutura e um regime, um mestre e um poder. A ansiedade é o éter do mundo fora do reino de Deus. A ansiedade mantém lojas abertas 24/7. A ansiedade mantém as estradas cheias até as altas horas da madrugada. A ansiedade mantém as pessoas trabalhando até tarde no escritório. A ansiedade é o que constrói os arranha-céus. A ansiedade é o que conduz o gasto do consumidor.

A ansiedade é causada por um insight muito simples, o insight de que somos criaturas limitadas, e o fato particular de que o futuro define a fronteira das nossas limitações. Não conseguimos enxergar além do próximo momento, muito menos o dia seguinte ou o mês seguinte.

Ainda assim, nós queremos ser capazes de gerenciar as coisas. Nós queremos garantir nosso futuro. Nós queremos ser capazes de saber alguma coisa sobre o que vamos comer, beber, vestir, ou o que vamos fazer no próximo ano, nos próximos cinco anos, nos próximos dez anos. Nós queremos saber que os nossos portfólios expandirão, que nossos filhos estarão vivendo por perto, que ainda teremos um cônjuge. E nós não podemos. Se você sabe que não pode gerenciar o futuro, e ainda assim tenta, só há um resultado possível: a ansiedade. Essa é a maneira do mundo, e é o que faz os Gentios buscarem “ansiosamente” comida, roupa, bebida, sucesso e todo o resto.

Jesus nos convida para dentro de um novo mundo. Jesus anuncia o reino que, em essência, significa anunciar o futuro de Deus. Jesus vem ao mundo anunciando que o futuro está chegando. Deus planeja governar sobre todas as coisas, e Ele está começando a reinar sobre todas as coisas agora. Ele pretende colocar Jesus no trono sobre todo o cosmo, e Ele está fazendo isso agora. Ele vai derrotar o mal e colocar Seu mundo em ordem, e Ele está fazendo isso agora.

O futuro está chegando, e o futuro está seguro nas mãos de Deus. Ele é o Deus do futuro, e Ele está estabelecendo Seu futuro no presente. E o reino que é o mundo futuro de Deus chegando no presente não é movido pela ansiedade, mas pela confiança, porque dentro desse reino nós sabemos que o futuro está assegurado. Nós sabemos que Deus tem tudo sob controle. Nós sabemos que Deus é o nosso Pai celestial que cuidará de nós. A sabedoria de Jesus é sabedoria apenas se isso for verdade.

Jesus começa contrastando o armazenar tesouros celestiais com o armazenar tesouros terrenos. Nós armazenamos tesouros celestiais fazendo o que Jesus falou. O verso 19 retoma aos capítulos 5–6. Quando damos esmolas aos pobres em secreto, oramos em secreto e jejuamos em secreto, estamos armazenando tesouros nos céus. Quando guardamos os mandamentos de Jesus estabelecidos no capítulo 5, nós estamos guardando tesouros nos céus.

Em contraste, Jesus diz que nós não deveríamos armazenar tesouros terrenos. Nós fazemos isso quando praticamos boas obras diante dos homens para ganhar reputação e poder. Nós também fazemos isso quando acumulamos dinheiro e terras e ouro e prata. Jesus descreve esse processo de forma gráfica, usando as mesmas palavras duas vezes — o Grego diz que nós não devemos “Entesourar tesouros”. Jesus não está apenas nos dizendo que devemos ser orientados em fazer nossas obras diante Deus ao invés dos homens. Ele também está insistindo em uma atitude particular em relação a riqueza terrena, e Ele está alertando sobre o grande dano causado pela ganância.

Advertências contra a ganância não são raras nos ensinamentos de Jesus. Isso é um tema regular de seu ensino e ministério. Ele acusa os Judeus e especialmente os líderes Judeus de serem motivados pela ganância. Os Fariseus estão cheios de “ganância e maldade” e “cheios de ganância e auto-indulgência.” Jesus quer que Seus discípulos evitem esse mal. Ele adverte que a ganância leva a um certo tipo de vida, uma vida de luxo e prazeres despreocupados, sem nenhuma consideração pelo pobre e pelo necessitado.

Essa é a atitude do homem rico, que se sacia enquanto Lázaro está deitado em sua calçada sendo cuidado apenas por cachorros. É isso que Ele [Jesus] está dizendo no final do evangelho de Mateus quando coloca os bodes na esquerda porque eles não fizeram bondade aos menores de seus irmãos. Eles não vestiram o nu, não alimentaram os famintos, não cuidaram daqueles em necessidade — e por causa disso eles estão indo para o inferno. A ganância é um pecado mortal.

É mortal na vida que virá porque já é mortal nessa vida. Em Seu encontro com o jovem rico, Jesus diz ao homem que se vangloria em guardar a lei que tudo que ele precisa é abandonar toda sua riqueza e dá-la ao pobre. E o jovem vai embora triste porque ele era muito rico, e porque ele era rico ele estava relutante em abandonar sua riqueza para seguir a Jesus. Seu amor pelo dinheiro, sua ganância, leva-o a abandonar Jesus e agarrar-se à sua riqueza. Um parte da semente semeada pelo semeador vai para o chão e é rapidamente sufocada por causa das preocupações e ansiedades deste mundo, porque o desejo pelas riquezas sufocam nossa fé.

Jesus diz aqui que o dano espiritual que a riqueza pode causar é enorme, e que tudo isso surge de uma falsa avaliação da segurança e valor do tesouro terreno. Ironicamente, algumas pessoas entesouram tesouros na terra, gastando todo seu tempo e energia e engenhosidade para ter certeza que eles ganharão dinheiro.

Mas isso é um tesouro que a traça pode destruir, que pode enferrujar, que pode ser roubada. Não há nenhuma maneira que garanta que essa riqueza pode ser preservada. Coloque no mercado de ações, ou no mercado imobiliário — você pode ganhar dinheiro por um tempo, mas não há nenhuma garantia que a riqueza estará lá quando você precisar. Entesourar tesouros na terra está fadado a gerar ansiedade porque nós sabemos que não podemos garantir o futuro.

Jesus segue com um lembrete simples que todos morreremos. Você não estará por perto para aproveitar toda riqueza que você acumula. Assim como o rico tolo que acumulou tesouros e construiu celeiro após celeiro, e então descobriu que sua alma era pedida, se você gastar sua vida acumulando dinheiro, você ficará desapontado. Você não pode mantê-lo. Você não estará aqui.

Jesus afirma que é impossível buscar ao mesmo tempo tesouros terrenos e celestiais. Ele descreve isso em termos da direção e orientação do nosso coração. Na Bíblia, o coração não é o centro das emoções, como é para nós. Na verdade, é o centro do pensamento, e é, de forma mais profunda, o centro da nossa orientação básica na vida. Nossas vidas vão na direção dos nossos corações. Nós temos um coração, e ele está direcionado às coisas terrenas ou às coisas celestiais (v. 21). Ele não pode ir para duas direções ao mesmo tempo. Ele não pode estar direcionado aos tesouros celestiais e aos tesouros terrenos. Há apenas um coração, então ele deve estar voltado para uma direção ou para a outra, nunca para duas ao mesmo tempo.

Jesus também descreve nossa riqueza em termos dos nossos olhos. Os olhos nas Escrituras são órgãos de julgamento e de avaliação. Se os nossos olhos valorizarem coisas terrenas, todo nosso corpo está em trevas; para estar cheio de luz, nossos olhos precisam estar abertos aos tesouros celestiais (vv. 22–23). Ou, Jesus poderia ter em mente o fato de que temos que ter nossos olhos abertos para a vinda do reino, e que precisamos valorizar o reino sobre tudo.

Jesus descreve Mamom, riqueza, como um mestre. Isso soa metafórico mas não é. O Dinheiro se torna um mestre; querer ganhar mais se torna o poder dominante e fundamental das nossas vidas. A riqueza pode se tornar nosso mestre, ditando como nós gastamos nosso tempo, talentos, tempo livre, energia, etc. A riqueza pode se tornar tão dominante que se torna uma obsessão. Nós queremos a coisa nova em todo tempo, a última coisa, e nós queremos fazer só mais um real, só mais um contrato grande. O dinheiro é um mestre, e é um mestre temeroso. Se somos servos de Mamom, não podemos ser servos de Deus (v. 24).

“Mas, mas,” nós dizemos. “Mas não somos Gnósticos, então as coisas terrenas são boas, certo?” Sim, as coisas terrenas são boas. Jesus não nega que as coisas terrenas são boas. Deus as fez. Claro que elas são boas. Porém, as coisas celestiais são melhores e mais seguras. Os tesouros terrenos estão sempre em risco de uma forma que os tesouros celestiais não estão (v. 20). Se você quer um investimento garantido, um investimento que é totalmente livre dos perigos das traças, da ferrugem, ou dos ladrões, então você precisa investir no céu, não na terra. Você precisa fazer a justiça do reino, que inclui dar dinheiro ao invés de acumulá-lo.

Outra objeção aparece: “Mas nós temos que viver!” Sim, e Jesus nos garante de que o jeito de estar certo de que teremos o suficiente é parar de se preocupar e confiar em nosso Pai. Jesus argumenta vários pontos. Ele não diz simplesmente “não se preocupe”. Ele diz isso. Mas isso não é tudo. Ele nos aponta para disciplinas, modos de pensar, e ações que vão nos conservar da ansiedade e da preocupação. Ele enfatiza que a vida é maior que a comida e a vestimenta (v. 25). Não é lamentável quando nossas vidas se resumem a vestir a última moda, ou ter o video game mais novo? Não é lamentável quando gastamos toda nossa energia no trabalho e nunca aproveitamos seu fruto? Não é a vida mais do que isso? Podemos nos tornar tão ansiosos sobre como vamos viver que nunca vivemos.

O Pai alimenta os pássaros que não gastam um segundo planejando ou ajuntando para o futuro, e Ele nos ama mais que pássaros (v. 26). Ele veste com a glória de Salomão a grama que dura um dia(vv. 30–31). Então a objeção de que precisamos viver é verdade, mas está fora de questão. Nosso Pai sabe que precisamos viver. Ele demonstra Sua misericórdia extravagante e generosidade todos os dias, se apenas abríssemos nossos olhos para ver. Parte da colocação no ensino de Jesus é a formação de uma comunidade de discípulos que confiam e servem o Pai. Os discípulos individuais podem ser livres da ansiedade porque sabemos que nossos irmãos e irmãs fornecem uma rede de segurança que nos apanhará. Essa é uma das maneiras que o Pai cuida de nós.

Jesus dá um mandamento aqui. Você realmente pensa sobre os pássaros e os lírios? Você nunca olhou para os mosquitos que te irritam no verão e se perguntou por que Deus mantém essas coisas vivas? Você já vislumbrou os peixes no pet shop que não passam de mosquitos nadadores, e considerou o fato de que eles são sustentados pelo Pai celestial? Quem você acha que alimenta os coiotes ou os lobos ou os alces? Não, você não pensa nisso. Nosso Pai cuida de tudo isso, e Jesus nos manda pensar sobre isso.

Finalmente, Ele aponta a tolice da ansiedade. Nós não conseguimos adicionar nada à vida sendo ansiosos (v. 27). Preocupar-se pelas coisas ruins que podem acontecer amanhã não as impedem de acontecer (v. 24). Além disso, nós já temos o bastante para lidar hoje. Acima de tudo, “seu Pai celestial sabe que vocês precisam dessas coisas” (v. 32). Você confia Nele?

A sabedoria de Jesus é uma sabedoria paradoxal, a sabedoria do reino de Deus. Nesse reino, só nos é garantido bens suficientes se renunciarmos o acúmulo e a ganância. Nesse reino, nós sabemos que podemos ter comida e roupas se buscarmos coisas além de comida e roupa. Nesse reino, nós nos apegamos a um mestre que é desprezado e rejeitado e por fim crucificado. Nesse reino, nós só podemos encontrar vida se primeiro perdermos a vida. Essa é a sabedoria do reino, a sabedoria de Jesus, o Salomão maior.

Texto original: Do Not Be Anxious, por Peter J. Leithart

Tradução: Felipe Felix

Revisão: Bruno Pasqualotto Cavalar, Leonardo Daneu Lopes

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