Natais gêmeos

Felipe Felix
Basileia
Published in
10 min readDec 25, 2017

por Alastair Roberts

Dream of Joseph — Rembrandt

Nos relatos do nascimento e da infância do nosso Senhor, tão familiares a nós de tantos anos de cultos de Advento e Natal, nós muitas vezes deixamos de reconhecer neles pistas sutis de uma natividade maior que ainda não chegou. Porém, o ouvido atento consegue descobrir nessas passagens o rico mel de um alegre mistério, já que suas palavras revelam a grande intimidade entre os eventos que elas relatam com aqueles eventos climáticos que estão bem no coração do evangelho Cristão.

Muitos dos primeiros eventos relatados nos evangelhos pulsam com possíveis simbolismos; qualquer um escutando atenciosamente deveria notar muitos detalhes curiosos e intrigantes. Por exemplo, as pessoas frequentemente percebem alusões a Gênesis nas palavras de abertura dos evangelhos e o desenvolvimento de temáticas do Gênesis nos versos seguintes. Entretanto, ainda existem muitas outras características dessas narrativas para se observar.

Os próprios personagens José e Maria podem atiçar o interesse do ouvinte. José, um sonhador que consegue a libertação trazendo pessoas para o Egito, é um personagem que pode trazer uma vaga sensação de déjà vu, senão de forte reconhecimento. O Êxodo aparece fortemente no plano de fundo dos capítulos iniciais de Mateus, já que Herodes, como Faraó, pretende matar bebês, e já que as pessoas são divinamente conduzidas a refugiar-se no Egito, e mais tarde, retornar para a terra de Israel.

José não apenas ecoa seu homônimo do Antigo Testamento, mas também se assemelha a Moisés, assim como Jesus. Moisés é instruído a voltar de Midiã para o Egito, já que os homens que buscavam sua vida morreram (Ex. 4:19). Ele toma sua esposa e seus filhos em um burro e dirige-se de volta ao Egito, havendo no caminho um encontro estranho e uma ameaça do Senhor, com Israel sendo descrito como o primogênito de Deus (Ex. 4:22–23). Esses temas reaparecem em Mateus 2, onde José recebe uma instrução similar para retornar para a terra já que os que buscavam a vida de seu filho morreram (Mt. 2:20). Assim como Deus confiou seu primogênito a Moisés, Deus também confiou seu único Filho a José. Mesmo que um burro não seja mencionado no evangelho de Mateus, as posteriores ilustrações Cristãs do retorno do Egito estão totalmente justificadas em fazer essa inclusão poética.

Embora os leitores de inglês [ou português] possam não reconhecer, o nome de Maria é uma versão de Miriã. Mais uma vez, existem paralelos curiosos entre Maria e Miriã. Miriã era a profetisa envolvida na libertação de Israel do Egito (Mq. 6:4). Foi ela que protegeu Moisés em sua infância, quando a sua arca de juncos foi escondida em meio aos juncos à margem do rio.

Não se nota frequentemente, mas a história do Êxodo é uma história de novo nascimento. O livro inicia com mulheres batalhando em parto, com a multiplicação dos Israelitas, com a coragem das parteiras Hebreias, com Joquebede escondendo seu lindo filho, e com a retirada de Moisés da água e sua nomeação pela filha de Faraó. Entretanto, de forma significativa, esses personagens aparecem contra o plano de fundo de uma nação gemendo em escravidão, ansiando por libertação. À medida que a narrativa se desenvolve, o tema do filho primogênito e da abertura da madre assumem proeminência. O ritual da Páscoa, os batentes marcados com sangue, e a lei sobre santificação dos primogênitos preparam e conduzem para a fuga do Egito e a travessia do Mar Vermelho, onde, conforme as águas são cruzadas e Israel passa por uma passagem estreita para uma vida nova de liberdade para fora do escuro útero do Egito, ocorre um tipo de renascimento nacional. Os paralelos com a própria salvação de Moisés das águas não é de forma alguma acidental. E, da mesma forma que ela estava na salvação de Moisés, Miriã é a mulher que lidera as outras mulheres em canção no novo nascimento de Israel.

As semelhanças entre Maria e Miriã, assim como as semelhanças entre José e seu homônimo do Antigo Testamento, são surpreendentes. Maria carrega, dá a luz, e protege o bebê Jesus. Ela está presente no nascimento e também na morte de Jesus. Ela é como uma figura materna para a Igreja, assim como Miriã era para Israel, aquela que a protegeu em seu período de gestação e cuidou de Israel em sua infância.

A comparação entre Maria e Miriã sugere um caminho de exploração. A vida de Miriã apresenta uma forma de simetria: ela estava presente na infância de Moisés, quando ele foi tirado da água, e também estava presente em um segundo paralelo de libertação na água, onde a nação de Israel renasceu do Egito e foi batizada em Moisés. Será que a vida de Maria manifesta alguma simetria parecida? Eu acho que sim.

No Evangelho de Lucas vemos uma prefiguração velada, nos eventos em torno da visita dele a Jerusalém com seus pais quando tinha doze anos, do que Jesus realizaria mais tarde. O menino Jesus ficou perdido por três dias, até ser encontrado no templo pelos pais, que o questionam — uma resposta que, de certo modo, antecipa a maneira que as pessoas que ainda não entenderam a natureza da vocação de Jesus são endereçadas pelos anjos e Cristo depois da ressurreição. Podemos encontrar outras formas similares de prefigurações nos capítulos iniciais dos evangelhos, juntamente com outros ecos posteriores dos eventos e detalhes relatados neles.

Jesus nasceu de uma virgem, uma mulher que não tinha se deitado com nenhum homem. Jesus foi enterrado em um túmulo “virgem”, uma sepultura onde nenhum homem se deitou (Lucas 23:53). Quando Jesus nasceu, ele estava embrulhado em roupas sujas e deitado em uma manjedoura. Quando ele morreu, ele estava embrulhado em linho e deitado no túmulo (vale notar que a manjedoura provavelmente parecia um caixão de pedra). Assim como a história do nascimento de Jesus se inicia com José e Maria, a história de sua morte e ressurreição também apresentam um novo José e Maria: José de Arimatéia e várias Marias na cruz e no túmulo. Eu suspeito que também devamos reconhecer os paralelos entre os pastores recebendo a notícia do nascimento de Cristo e os ‘pastores’ apostólicos recebendo as alegres notícias da ressurreição.

Todos esses paralelos não são apenas para efeito poético: eles nos alertam para as simetrias significantes entre o nascimento de Cristo e o evento de sua morte e ressurreição. Em particular, eles sugerem que devemos entender a morte de Cristo e sua ressurreição como um novo nascimento.

O paralelo entre o útero e o túmulo é comum nas Escrituras. A terra é o útero de onde nós nascemos e o túmulo para onde retornaremos. O útero da mulher é uma extensão da própria fecundidade da terra como sugere o paralelo entre a terra e o útero da mulher nos julgamentos de Gênesis 3. O útero e o túmulo também são associados poeticamente em passagens como Jó 1:21: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá” e Salmo 139:13–15: “Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no seio de minha mãe […] os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra.”

No Novo Testamento, Cristo é descrito como o “primogênito dentre os mortos” (Colossenses 1:18), aquele que abre o útero da sepultura. Ele é o que abre as águas do Sheol para que seu povo possa segui-lo em terra seca. Ele é o que permite a terra dar à luz os seus mortos (Isaías 26:19).

De todos os evangelhos, João é que apresenta de forma mais proeminente a cruz e a ressurreição como um evento de nascimento. Ao longo do seu evangelho, João apresenta alguns personagens de uma forma quase iconográfica. Maria, por exemplo, nunca é nomeada, mas é simplesmente mencionada como a mãe de Jesus. Há, também, muitas ocasiões onde os personagens são simplesmente referenciados como “Mulher” — a mãe de Jesus (2:4, 19:26), a mulher Samaritana (4:21), e Maria Madalena (20:15).

Addison Hodges em seu livro, The Woman, the Hour, & the Garden, argumenta que a figura da Mulher em João, várias vezes refratadas em personagens específicos, é significativa. Particularmente importante para entender o significado desse personagem é João 16:21, onde se fala, literalmente, da mulher que, depois do trabalho de parto, se alegra quando sua hora chega, pela alegria de ter nascido ao mundo um homem. Essa linguagem é rica em conotações, relembrando-nos de que Jesus referencia muitas vezes sua morte e glorificação como sua hora. A figura da mulher é associada com a comunidade dos discípulos em João 16:22, com Jesus implicitamente associando a si mesmo com o homem que nasceu ao mundo.

As outras referências a ‘mulher’ no evangelho de João preenchem esse ícone literário. No casamento em Caná, Jesus se refere a sua mãe como ‘mulher’, uma forma aparentemente brusca, declarando em resposta a afirmação dela sobre o vinho: “minha hora ainda não chegou” (2:4). Em 4:21, Jesus diz a mulher Samaritana: “Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai.” Finalmente, Jesus fala a sua mãe nos pés da cruz, falando sobre o discípulo amado, “Mulher, eis aí o teu filho.” (19:26). Depois disso, lemos: “desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa” (19:27).

O novo nascimento de que Jesus fala no evangelho de João é um novo nascimento que vem através da própria morte e ressurreição de Cristo como o primogênito dos mortos. Isso, eu creio, é o nascimento dado à mulher de que fala Apocalipse 12. A mulher que dá à luz é Israel e a Igreja, simbolicamente manifestas em Maria e nas outras mulheres dos evangelhos, em cada uma das quais podemos ver uma faceta diferente dessa existência. Em Maria, vemos a mãe virgem. Na mulher Samaritana, vemos a restauração da mulher infiel (note os paralelos literários entre ela e a prostituta infiel da Babilônia no Apocalipse e veja as observações de Warren Gage).

Em Maria Madalena vemos a nova Eva no jardim, seus olhos abertos para seu Senhor enquanto ela busca por ele, assim como Deus uma vez buscou por Adão. Como Hart observa, o fato da cruz e o túmulo serem descritos por João como um jardim (19:41) é significativo, alertando-nos para os temas Edênicos que estão no plano de fundo no encontro de Maria Madalena com o Cristo ressurreto. A cruz é a árvore da vida, de onde sangue e água vivificantes fluem do lado ferido do novo Adão (19:34), aquele cuja carne dará vida eterna aos que a comerem. Vale notar a referência aos rios de águas vivas fluindo da barriga (ou útero [?]) de Cristo (João 7:38): é do corpo de Cristo que o ‘nascimento’ ocorre. A apresentação do discípulo amado (e arquétipo) a sua mãe Maria na cruz é um símbolo do nascimento que aconteceu, à medida que ele abre o útero e restaura a humanidade para o jardim. Embora o nascimento virginal de Cristo não seja registrado no evangelho de João, ainda assim Maria tem um “parto” nele.

Talvez os quarenta dias entre a ressurreição e a ascensão (Atos 1:3), depois dos quais Cristo ascendeu ao templo celeste e os discípulos oraram e adoraram Deus no templo terrestre com as mulheres e Maria (note que a presença delas é relatada explicitamente em Atos 1:14), se refiram ao período de purificação que era necessário depois do nascimento de um menino em Levítico 12:1–4. Isso sugeriria um paralelo entre a) Ana e Simeão e a apresentação de Cristo no Templo e b) os discípulos e os eventos que levaram ao Pentecoste (a apresentação do Espírito?) no templo.

A presença proeminente de mulheres nas narrativas ao redor da morte e ressurreição de Cristo é uma característica que merece atenção. É importante que nós valorizemos quão estreita é a associação entre as mulheres dos evangelhos e o corpo de Jesus. Jesus é concebido no útero de Maria e nasce dela; Maria oferece seu próprio corpo para carregar o bebê Cristo. Além disso, vemos o cuidado que algumas mulheres dão ao corpo de Jesus. Maria de Betânia derrama perfume sobre os pés de Jesus e os seca com o seu cabelo (João 12:1–8). Ela unge o corpo de Jesus para o enterro e antecipa o próprio ato simbólico de Jesus no capítulo seguinte, através do qual ele representa o sacrifício vindouro para seus discípulos [lavapés].

Mais tarde, vemos que as mulheres estão particularmente presentes na crucificação, mesmo quando os discípulos homens em sua maioria fugiram. São as mulheres que vão visitar o túmulo com especiarias, para amorosamente cuidar do corpo de Jesus. Elas se tornam as primeiras testemunhas do túmulo vazio e, mais tarde, da ressurreição. Quando Maria Madalena finalmente vê Jesus, a quem ela inicialmente confunde com o jardineiro, sua primeira reação é segurar o seu corpo.

As mulheres enfrentam a resistência, o descrédito e o abandono dos discípulos homens. Entretanto, são elas que têm a preocupação mais íntima e amorosa pelo corpo de Jesus. Enquanto os discípulos parecem focar mais na missão de Jesus e estão envolvidos bem de perto com essa atividade, quando a missão ainda não havia começado ou aparentemente terminado, são as mulheres que vêm para frente, exibindo uma preocupação profunda e amorosa pelo seu corpo e pela sua pessoa em sua aparente humilhação.

As mulheres são as pessoas que encontramos nas grandes transições corporais — nascimento, morte e ressurreição. Elas permanecem com Cristo nos lugares mais escuros do mundo, quando ninguém mais é encontrado. Elas possuem, em muitos aspectos, um tipo de ligação com Cristo que é mais próxima e mais íntima do que os discípulos homens parecem ter. Importantes como foram os grandes atos de Jesus no seu ministério terreno, é através da sua atenção ao corpo dele e à sua pessoa em humilhação (Cristo bebê, Cristo vítima, Cristo cadáver) que as mulheres estão presentes nos momentos mais significativos de todos.

Como essas observações e temas devem moldar nossa celebração do Natal?

Conforme percebemos nas figuras tais como de Maria e de José um simbolismo profundo e uma série de padrões narrativos, devemos aprender a descobrir dentro da história do natal o mesmo tipo de significância que os Israelitas possivelmente viam na história do nascimento e salvação de Moisés, uma história que prefigurava e era uma preparação para a própria libertação do povo, já que eles também seriam tirados das águas do Mar Vermelho. A história do nascimento de Cristo antecipa a história do seu novo nascimento ou da nova criação e o nascimento ou criação da Igreja. O natal é uma história em que estamos sutilmente envolvidos.

Esses paralelos também podem enriquecer nosso entendimento do evangelho e nosso lugar nele. Eles manifestam uma unidade mais profunda a obra de Cristo que poderíamos não ter notado. Eles revelam algo sobre a proeminência e significado da Igreja como uma figura simbolicamente manifesta nos evangelhos — a Mulher. A Igreja é nossa mãe (Gálatas 4:21–31), e cada igreja pode ser referida como senhoras eleitas e irmãs, e os cristãos como seus filhos (2 Jo 1:1, 13). Eles também revelam a importância, negligenciada, das mulheres como símbolos nos evangelhos.

Esse Natal, enquanto você escuta mais uma vez a história daquele ‘primeiro Natal’, convido você a escutar sua gentil introdução aos temas da Páscoa. E, quando a Páscoa chegar novamente, que você escute as alegres notícias do segundo Natal.

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