Novos Ritos, Estranhos e Gloriosos

James B. Jordan

Eneas Nogueira
Basileia
9 min readAug 13, 2020

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Bread broken — Mary Stephen

Na última ceia, Jesus tomou o pão e, tendo dado graças, o partiu e o deu aos Seus discípulos, dizendo: “Tomem e comam, este é o Meu corpo dado por vocês. Façam isto como Meu memorial.”[1]

Os discípulos reconheceram o que Jesus fez, porque era realizado todas as manhãs e todo entardecer[2]. Era o rito do Tributo, descrito em Levítico 2. As Bíblias em inglês, geralmente, traduzem mal a expressão como “oferta de grãos” ou “oferta de refeição” ou “oferta de cereais”, ou simplesmente, e muito inutilmente, “oferta”[3]. Mas ao passo que esse rito consiste de grãos ou pão, seu nome é minchah, que significa “presente” ou “tributo”.

O Tributo diário é apresentado em Números 28:3–8 e consistia em farinha de trigo não preparada misturada com óleo. As outras variedades do Tributo, no entanto, eram assadas de várias maneiras, e algumas eram partidas em pedaços. Todas eram divididas, com o sacerdote recebendo uma porção depois que o Senhor havia recebido a Sua. A parte dada ao Senhor era chamada de “memorial” (Lv. 2: 2,9,16).

Um memorial é uma ação feita diante de Deus, ou um objeto colocado diante de Deus, que o lembra do que Ele havia feito no passado, o lembra do pacto e o convida a vir, julgar e renovar esse pacto. Em um sentido amplo, todos os ritos feitos diante de Deus no Tabernáculo eram memoriais, mas apenas os ritos do pão eram realmente chamados de memoriais (Lv. 5:12; 24: 7; Nm. 5:15).

O que Jesus faz é reconhecível, mas talvez surpreendente e até chocante. Os discípulos não sabiam que Jesus era Deus encarnado. Nem eles, nem sua mãe Maria nem ninguém mais poderia ter lidado com ele se soubessem disso. Eles só sabiam que Ele era a Semente da mulher, o filho de Davi, o Messias. Somente depois de sua ressurreição eles perceberam com temor que Ele era “meu Senhor e meu Deus”, como disse Tomé.

Então, quando Jesus toma o pão e pega um pedaço para Si mesmo primeiro, chamando-o de Seu próprio memorial, parece que Jesus está tomando para Si a mesma posição que o Senhor Yahweh tinha ocupado no sistema dos rituais. O memorial era feito a Yahweh, e Yahweh recebia a primeira parte do pão do Tributo. Agora Jesus está dizendo que o memorial é sobre Ele, e Ele pega o primeiro pedaço do pão (aliás, é isso o que partir o pão significa — que Ele pegou um pedaço para si mesmo).

Então, tendo lembrado esses judeus do ritual diário do Tributo, Jesus lhes dá pedaços desse pão. Eles nunca haviam comido pão de Tributo porque nenhum deles era sacerdote araônico. Agora Jesus está tratando-os como sacerdotes, um novo sacerdócio com Ele como o novo Senhor.

Mas então Jesus faz algo ainda mais radical. Ele toma um cálice de vinho e, tendo dado graças, dá aos discípulos e diz: “Bebam disto, todos vocês. Este cálice é a nova aliança no Meu Sangue. Façam isto, todas as vezes que o fizerem, como Meu memorial.”[4]

Se os discípulos tivessem alguma dúvida sobre o que Jesus estava fazendo com o primeiro ritual, o segundo os deixou sem nenhuma. Todas as manhãs e todo entardecer, durante o Tributo, o vinho era derramado como uma libação no altar (Num. 15: 1–16; 28: 7). Nada do vinho era dado aos sacerdotes. Não é claro se ele era derramado no altar (que era oco) ou na sua base. Não é chamado um memorial.

Mesmo assim, passando do pão para o vinho, desta forma, Jesus estava claramente reinstituindo o rito do Tributo de uma nova maneira, e os discípulos reconheceriam isso imediatamente, já que era feito duas vezes ao dia.

Por que o vinho não é compartilhado com os sacerdotes? E por que não é chamado de “memorial”? A razão está nas associações do pão e do vinho na teologia bíblica. O pão é sacerdotal e os sacerdotes comiam pão. O vinho, no entanto, é proibido aos sacerdotes enquanto eles trabalham (Lv. 10:9, e contraste o v. 12). Quando estavam de folga, podiam beber, mas, quando na função de sacerdotes, eram proibidos. Além disso, como nos diz Hebreus, eles sempre ficavam de pé e nunca se sentavam.

Em contraste, reis são retratados como entronizados em repouso e, freqüentemente, desfrutando de vinho. Evidentemente, eles não devem ficar bêbados, mas o vinho é um símbolo da paz que um bom rei deve desfrutar e patrocinar. Como Meyers escreve, “Pão e vinho são comida e bebida para reis: são alimento régio.” (Gn. 14:18; Gn. 40; 2 Sm. 16:1–2; Ne. 1:11; Et. 7:1,2,7,8)[5].

Na história bíblica, nos movemos de sacerdote para rei, do período da Lei Sinaítica, com ênfase em sacerdotes, para o período da Sabedoria do Reino. Nós também nos movemos do deserto para a terra. A área sacerdotal é, como discuti em Through New Eyes, uma pequena zona de deserto dentro da terra. O Tabernáculo é um modelo portátil do Monte Sinai, e a área do pátio ao redor dele é um espaço deserto. O israelita deixa a terra e vai ao deserto para encontrar Deus no altar e nos rituais levíticos e então, renovado, volta para a terra.

A área de terra sacerdotal é, portanto, selvagem. É o lugar do maná, que é como pão, e portanto é o lugar do pão do Tributo. Não é o lugar das uvas. A terra, a área régia, é o lugar das uvas. O Senhor instituiu a libação de vinho em Números 15 imediatamente depois que os espias retornaram da terra carregando um enorme cacho de uvas (Num. 13:23–24). Números 15:2 diz que a libação do vinho deve ser adicionada aos rituais do pão somente depois que eles entrarem na terra (observe em Números 15:4–10 e em 28–29 que a libação do vinho vem sempre depois da farinha do Tributo).

Podemos começar a ver agora porque o pão é um memorial e o vinho não. Pão é para começos. É comida alfa. Você começa o dia com ele. O vinho é para o final do dia. É comida ômega. O memorial do Tributo dizia a Israel que Deus havia iniciado Sua grande obra. Ele havia instituído o culto sacerdotal. Ele o havia instituído completamente, embora fosse ser modificado no futuro. Eles foram autorizados a vir diante de Deus e a lembrá-lo que Ele havia terminado o começo, por assim dizer. Eles poderiam trazer o pão memorial diante dEle e pedir-lhe para renovar o começo, para dar-lhes um novo começo.

O reino, no entanto, não havia chegado. E embora eles tivessem vindo para a terra e eventualmente viessem a ter um rei davídico, o vinho nunca esteve completamente lá. Eles não podiam bebê-lo na presença de Deus, mas tinham que derramá-lo. Não havia memorial no vinho, porque o fim não havia chegado. O reino não havia chegado completamente. Por isso, eles não podiam trazer vinho memorial diante de Deus e pedir a Ele para renovar os “fins dos tempos” e a “plenitude do reino”.

Quando Jesus diz que o vinho agora deve ser bebido, e que é um memorial, Ele está dizendo aos discípulos que o fim dos tempos chegou. O reino chegou. O rito que Ele deixa com eles memorializa[6] para nós primeiro a plenitude do começo com o pão alfa, e depois memorializa a plenitude do completamento com o vinho ômega.

Um pouco mais pode ser dito sobre isso. No Tabernáculo e no Templo, havia pão no Santo Lugar, uma área sacerdotal onde os sacerdotes faziam seu trabalho diário. Deus foi entronizado como rei no Santo dos Santos, mas nenhum sacerdote ou qualquer outra pessoa era autorizada a entrar naquela sala[7]. O homem não havia sido convidado a compartilhar o governo com Deus. Esta é parte da razão pela qual o vinho régio é excluído do Tabernáculo. Se o homem for beber vinho na presença de Deus, então ele deve estar na sala do trono com Deus e sentado com Ele. E antes de Jesus, não havia homem adequado para essa glória. Assim, o vinho era trazido para perto, mas depois era derramado.

Quando Jesus disse aos discípulos que eles deviam beber vinho na presença de Deus, sentados como estavam numa mesa, Ele estava lhes dizendo algo muito radical. Ele estava lhes dizendo que eles não eram apenas todos “sacerdotes araônicos” e tinham direito ao pão sagrado, mas que agora eles também eram reis que tinham o direito de estar na sala do trono de Deus e compartilhar o vinho com Ele. Este foi um sinal de que toda a história da redenção e sua maturação estava sendo levada ao fim. Como João vai mostrar em Apocalipse, os santos se sentariam em tronos ao redor do trono de Deus no Santo dos Santos celeste, um ponto também feito pelo autor de Hebreus a seu jeito, e por Paulo que nos diz que estamos sentados nas regiões celestiais em Cristo.

(Qualquer um que perceba o que tudo isso significa achará impossível defender o ajoelhar-se ou ficar em pé durante a Ceia do Senhor. Todo o significado do rito é que somos co-reis com Cristo, sentados e relaxando, bebendo vinho com Ele.)

Em Levítico 2, o memorial do pão está ligado ao pacto: O sal do pacto é exigido em todo Tributo (v. 13). Como é de se esperar, a libação do vinho não está ligada ao pacto. Mas Jesus faz outra mudança radical. Ele não diz que o rito do pão é o pacto ou o novo pacto, mas associa o pacto ao rito do vinho. A Antiga Aliança era sacerdotal, mas a Nova Aliança é régia.

Observações finais

Duas observações me atingem ao encerrar este ensaio. A primeira é que ao longo de praticamente toda a história da igreja, as discussões teológicas sobre a Ceia do Senhor giraram em torno do pão, do corpo de Cristo e do que o corpo significa, e se e como Jesus pode ou não estar escondido no pão, e assim por diante. Naturalmente, qualquer teologia que tente argumentar por algum tipo de presença localizada de Jesus no sacramento tem um problema imediato com o fato de que existem dois rituais aqui e, assim, Jesus está presente tanto no pão quanto no vinho, ou na metade de cada um, ou o quê? Isso pode ser parte da razão pela qual algumas tradições acham conveniente esquecer o vinho e o sangue quando fazem a teologia sacramental. A igreja medieval decidiu que o sangue estava no corpo, para que o rito do vinho pudesse ser eliminado. Toda discussão medieval é sobre o corpo: místico, corporativo, sacramental, pessoal.

Em contraste com toda essa tradição, o rito instituído por Jesus impunha o peso sobre o vinho, o cálice e o sangue. Nisto, e não no pão, é onde a aliança está localizada. Esta é a nova e impressionante parte do duplo rito. Assim, toda a história da reflexão teológica é, no mínimo, desprovida de base em sua ênfase.

Em segundo lugar notamos que, em conexão com o vinho, Jesus diz: “todas as vezes que o fizerem”. Ele não diz isso em conexão com o pão. Tem sido argumentado que, talvez porque o vinho é caro, as igrejas pobres podem não ter vinho todas as semanas. Pão, no entanto, estaria sempre disponível, porque se a igreja não tivesse dinheiro sequer para pão, a igreja estaria morta.

Isso é possível, suponho, mas acho que há outra sugestão que é melhor. Lemos em Atos que eles partiam o pão de casa em casa. Estudiosos têm mostrado que esta não é uma expressão que era usada para refeições regulares e, assim, se refere claramente ao rito instituído por Jesus. Mas, evidentemente, apenas para o primeiro rito. Em pequenas reuniões, eles faziam o rito do pão, mas não o rito do vinho. Em 1 Coríntios 11, quando Paulo discute os dois ritos, ele diz que é “quando vocês se reúnem” que eles devem ser feitos.

A imagem que parece emergir é que o rito duplo era feito quando toda a igreja estava reunida e, portanto, era uma renovação da aliança porque a aliança está associada ao cálice. Mas grupos menores podiam e de fato se encontravam mais informalmente durante a semana, e dividiam o pão empregando o primeiro rito, o que não era uma renovação da aliança.

Sobre o autor: James Jordan é um estudioso em residência no Instituto Theopolis. Este texto foi originalmente publicado em Rite Reasons No 90.

Notas

[1] No original, “Take, eat, this is My body given for you. Do this for My memorial.”

[2] Nm. 28: 4, 5 (N. do T.)

[3] Nas Bíblias em português temos “oferta de alimentos” (Almeida Corrigida Fiel), “oferta de cereais” (Almeida Revisada Imprensa Bíblica, Almeida Século 21, Nova Tradução na Linguagem de Hoje), “oferta de cereal” (Nova Versão Internacional, Nova Versão Transformadora), “oferta de manjares” (Almeida Revista e Atualizada, Almeida Revista e Corrigida). (N. do T.)

[4] No inglês, “Drink of this, all of you. This cup is the new covenant in My blood. Do this, whenever you do it, for My memorial.”

[5] Jeffrey J. Meyers, “Concerning Wine and Beer”, Rite Reasons 48–49.

[6] “Memorializar” é um neologismo do tradutor para a expressão em inglês “to memorialize”, que pode significar “memorizar, fixar na memória”. Quis deixar “memorializar” para trazer à mente a palavra “memorial”.

[7] Com exceção do Sumo Sacerdote, e uma vez por ano, no dia da expiação (N. do T.).

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