O Verbo se fez Carne

Peter J. Leithart

Bruno Pasqualotto Cavalar
Basileia
4 min readDec 31, 2017

--

Antes de João proclamar o evangelho de Deus, ele introduz o Deus do evangelho.

Deus tem um Verbo eterno. Esse Verbo trouxe tudo à existência, mas Deus pronunciou o seu Verbo eternamente antes de ter pronunciado o seu fiat lux [faça-se luz]. O Verbo está “diante” de Deus, face-a-face, de modo que Deus vê e conhece a si mesmo no Verbo que é a sua imagem. O Verbo é uma verbalização tão perfeita de Deus que ele é o próprio Deus. Quando Deus fala, ele fala a si mesmo novamente. Deus é eternamente comunicativo, eternamente auto-comunicativo.

Isso se torna boas novas quando João diz que Deus pronunciou o seu Verbo num lugar e numa forma que nós podemos receber. O Deus do evangelho é o Deus que tem e é um verbo eterno. O evangelho de Deus é o anúncio: “o Verbo se fez carne.”

João não quer apenas dizer que o Verbo assumiu um corpo ou uma natureza humana. Nas Escrituras, a carne não se refere apenas aos músculos e nervos que ocupam o espaço entre os ossos e a pele, mas também descreve criaturas que são feitas a partir do nada. Como carne, não temos vida em nós mesmos. Como carne, somos penetráveis, moles, e vulneráveis a agressões e ataques. A carne pode ser machucada. A carne se refere aos seres humanos na nossa fragilidade e necessidade.

Depois de Adão pecar e a morte entrar no mundo, a carne fraca se torna carne mortal. Separados de Deus, a carne se torna autoindulgente. Nós buscamos os desejos da carne que militam contra o Espírito de Deus.

A carne também é, estranhamente, a fonte de toda violência e agressão. Vulneráveis e mortais, nós somos escravizados pelo medo da morte (Heb 2:15), dor, perda, e pelos milhares de choques naturais da qual a carne é herdeira. Nós batemos em nossos peitos e colocamos máscaras patéticas para esconder a nossa debilidade. Nós machucamos os outros para nos prevenir de que a nossa carne seja machucada; nós fazemos os outros de bode expiatório para proteger nossas reputações; nós nos tornamos agressivos para guardar os nossos confortos. A própria fraqueza da nossa carne nos torna reativos e violentos.

A carne assim descreve a totalidade da condição humana. Nós somos carne porque somos fracos, frágeis, vulneráveis, criaturas necessitadas. Debaixo do poder do pecado, nós somos carne porque somos mortais e egoístas. Escravizados pelo medo da morte, nós fazemos o que o apóstolo Paulo chama de “obras da carne” — imoralidade, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções e invejas.

Dizer que o “Verbo se fez carne” é dizer que o Verbo assumiu a totalidade da nossa condição dilapidada. Ele se tornou fraco, dependente, vulnerável, mortal. O Verbo é tentado por todos os instintos indulgentes e violentos da carne, mas ainda assim ele não peca. Deus não se distancia da nossa carne. Ele entra nela para torná-la sua e transformá-la por dentro.

Deus o Verbo fala em nossa carne e através da carne, mas, ainda assim, ele fala como o Verbo que é Deus. A criação não é um obstáculo para a auto-comunicação de Deus. Mesmo uma criação quebrada não é um obstáculo para a auto-comunicação de Deus. O Deus que pronuncia a si mesmo eternamente na Palavra pronuncia a si mesmo na carne humana. A glória brilha através das ruínas.

É fácil entender isso errado. Somos tentados a pensar que o Verbo fala quando Jesus transforma água em vinho, cura um homem que foi paralítico por décadas, dá vista a um cego de nascença, chama o cadáver de Lázaro para fora da sepultura.

Esses sinais revelam o Verbo que é Deus. Mas o Verbo também pronuncia na fome, na fatiga e na sede de Jesus. De modo supremo, Deus pronuncia sua glória na carne retalhada do Crucificado. A hora da cruz é uma hora de humilhação. Naquele momento, a carne do Verbo provou ser carne total, vulnerável à chicotes e espinhos, até mesmo à morte de cruz. Naquele mesmo momento, quando a carne do Verbo é totalmente carne, o Verbo pronuncia de forma mais plena a glória do Pai. A hora da humilhação é uma hora de glória, quando o Filho glorifica o Pai que o glorifica.

Essas são as boas novas do Advento: porque Deus pronunciou o Verbo na carne, ele pode pronunciar glória na tua vergonha, poder na tua fraqueza, triunfo no meio da perda e da derrota, plenitude no teu quebrantamento, vida na tua morte. O Verbo que se tornou carne habita na tua carne e pronuncia a si mesmo ali, em meio às tuas ruínas.

--

--